sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Nabokov revisitado no alfa pendular: ontem fotocópias, hoje jantar num restaurante de luxo rodeado de mulheres da Boémia, onde se falou de Gregor Samsa, minorias linguísticas e nobres checos enviados como embaixadores à Corte de D. Afonso V; é isto, meus amigos, a suprema e inexplicável complexidade da vida.

O Porto tem hotéis espectaculares mas nada se compara com a RTP Memória - o melhor canal de televisão segundo maradona - onde neste momento podemos televisionar um programa de 1997, intitulado Falatório, conduzido por uma desconcertante Clara Ferreira Alves, de farta franja enegrecida, lábios carmesim, saia de sarja, botins Gestapo e camisola de lã castanha de onde saiem desesperados dois colarinhos cor-de-laranja. A indomável jornalista apresenta-se bastante cordeirinha diante do então relativamente famoso José Cardoso Pires, estando este, por sua vez, na posse de um polo azul riscado a branco com colarinho vermelho e calças de fazenda, um blazer azul de tirilene, e acaba de dizer (salivando por entre a baliza formada pelo monumental afastamento dos dois gigantescos dentes da frente) que o grande escritor é aquele que não tem estilo, ao que eu respondo, exactamente a razão pela qual os seus livros correm dolorosamente para a morte e o esquecimento, ou seja, têm estilo a mais. Eis agora o grande momento. Pergunta Clara Ferreira Alves: como gostarias de ser recordado pela posteridade? Responde José Cardoso Pires: a posteridade é uma bela desculpa para os falhanços.
 
Pois é. Quem lê hoje José Cardoso Pires, meus caros amigos? Eu próprio, este monstro cultural que não trabalha, li apenas o Delfim - que larguei a meio, pois cheirou-me a etnologia barata - um pouco da confusão fantasiosa de Alexandre Alfa, e outras merdolas várias cheias de esforço erudito misturadas com calão barato, que também larguei a meio, não sem algum peso na consciência que, no entanto, desapareceu de forma milagrosa no dia em que constatei que Inês Pedrosa privava com Cardoso Pires e julgava essencial que os jovens escritores fossem obrigados a passar por Cardoso Pires antes de ingressar nos clássicos. A verdade é que Cardoso Pires, um homem temível na boémia lisboeta segundo reza a lenda, não deve ser responsabilizado por estas coisas, pois apenas procurou, como por exemplo o Tolan, ganhar a vida, mas não podemos, contudo, isentá-lo de uma verificação dos prognósticos a que a tecnologia se presta com admirável suavidade. Ficam bem os argumentos do sucesso enquanto o tempo nos assiste, mas a televisão conta entre os seus mágicos poderes também maravilhas como esta: um indivíduo que já morreu a cantar o seu canto do cisne - num canal temático e em vias de extinção - para uma posteridade que já o enterrou. Eu diria que o sucesso em vida é uma bela desculpa para as pessoas que ainda estão vivas mas quando a morte ergue a sua rebarbadora eléctrica e o ruído jubiloso da serra ecoa nas gélidas paredes formadas pelos nossos derradeiros segundos, apenas contará de nós aquilo que nos  sobreviverá, pelo que teremos que aguardar por momentos a que já não poderemos assistir em vida e se também em  morte a esse momentos não podemos assistir, palpita-me que nada nos resta - como num mau filme americano - senão fazer o que temos a fazer. Tenho muita pena de facultar mais uma decepção aos meus leitores comprometidos com a força da realidade presente, mas se nós não existimos no futuro, muito menos existimos no passado.
 
 
Permitam-me que recupere, deste modo, a questão colocada pelo Tolan aqui há dois ou três posts: a alternativa ao juízo crítico sobre aquilo que consideramos maus livros é a produção de um livro próprio nas prateleiras das livrarias com código de barras, ISBN, preço de venda e restantes parafernálias político-administrativas. Concordo, mas não sob qualquer circunstância: e é isso que eventualmente nos divide. Não será o preço da nossa dignidade dependente do tamanho da nossa inteligência? Não temam, que não perseguirei ninguém por transigir com os critérios do seu sucesso mas um diferendo que mantenho comigo próprio - que como todos sabem, são os únicos diferendos verdadeiramente mortais - é precisamente sobre se o José Rodrigues dos Santos, por exemplo, não chorará as lágrimas mais amargas na solidão do seu exílio nocturno, precisamente por ser proprietário de uma réstea de inteligência que permite vislumbrar, ainda que por breves mas dolorosos momentos, a inanidade do seu próprio triunfo. Todos nós temos sido, de uma forma ou de outra, escravos da delegação de Viena, acreditando com fastidiosa facilidade nos benefícios a alcançar por força das nossas pulsões de domínio sobre a realidade; mas quem garantirá que no mais feio e limitado entendimento não brilha uma centelha de clarividência, uma vibração de ilimitada liberdade criativa capaz de provocar a comoção do arrependimento ou pelo menos capaz de puxar à superfície um grito de protesto perante a insuficiência do que se é? É isso que define um grande escritor: não depender apenas dos seus próprios limites para julgar o valor do seu trabalho.

7 comentários:

Ex-Vincent Poursan disse...


Oh alf, eu até estava pra inserir aqui um comentário pilhérico, daqueles que costumo escrever a fingir pombos correio mas que voam curto e baixo, sobre a Alexandra Alpha ter virado Alexandre.

Vou antes interrogar-me, de baixo pra cima, sem metáfora de cama mas alguma consideração, se tu, não encontrando o que procuras no que lês, não deixarás de encontrar o que lá está???!!!

o anão gigante disse...

Com todo o respeito acho uma merda que nem O Hóspede de Job tenha escapada a esse crivo aleatório.

Tolan disse...

Mas porque achas que o triunfo do José Rodrigues dos Santos é inano... tem inanidade... é inidinoso.. é... isso? No mercado dos livros mainstream, especialmente nesse mercado, há uma verdade objectiva: as vendas ou o impacto popular / cultural, mesmo que fugaz. É como comparar reality shows ou bancos ou equipas de futebol ou músicas pop. As inanidades estão no falso, naquilo que é mal avaliado por quem devia ter obrigação de avaliar bem, no meio alternativo ou sério, digamos assim, onde se sobrepõe uma apreciação subjectiva. Por exemplo, entre pessoas que lêem livros, as conversas são do tipo "epá, o Bukowski não presta para nada" e a outra pessoa diz "não percebes nada disso, o Bukowski é muito bom, tens um preconceito" e outro diz "tens mas é de ler Céline" etc. Ou seja, a discussão move-se em planos muitos subjectivos. As pessoas que lêem José Rodrigues dos Santos avaliam os livros quanto à relação nº de páginas preço, quanto a ser aborrecido ou não e quanto ao número de pessoas que conhecem que leram. Ao José Rodrigues dos Santos acho que nenhum crítico faz broches, visto que ele não precisa, pelo que não há inanismo. O que é inaninoso e inaníquo ou inanimado é quando ocorre um embuste, quando algo é percebido e vendido por outros como algo que na realidade não é, "bons escritores" que na realidade são uma merda. Contudo, também se compreende que isto suceda. Existe uma procura de bons escritores contemporâneos sérios, é como se tivesses uns slots vazios em cada ano que têm de ser preenchidos com o que há. A colheita pode ser má nesse ano, mas é preciso fazer vinho dessas uvas, afinal de contas, há essa coisa da "literatura portuguesa contemporânea" que se leva ao brasil na comitiva, os prémios literários, a crítica, enfim... Todos os anos há Oscares e Cannes, lá fora é exactamente igual, e depois tens anos péssimos e filmes horríveis que ganham porque tiveram a sorte de serem filmados num ano péssimo e grandes filmes que não ganharam etc. Mas está tudo bem.

Tolan disse...

o lado positivo disto, e é aí que entra a questão da importância de ser alternativa, é que essa alternativa num contexto desfavorável ganha mais relevância, é mais interessante. Como os Heróis do Mar no Portugal dos anos 80.

Tolan disse...

já agora, grande bocado de texto: «onduzido por uma desconcertante Clara Ferreira Alves, de farta franja enegrecida, lábios carmesim, saia de sarja, botins Gestapo e camisola de lã castanha de onde saiem desesperados dois colarinhos cor-de-laranja. A indomável jornalista apresenta-se bastante cordeirinha diante do então relativamente famoso José Cardoso Pires, estando este, por sua vez, na posse de um polo azul riscado a branco com colarinho vermelho e calças de fazenda, um blazer azul de tirilene, e acaba de dizer (salivando por entre a baliza formada pelo monumental afastamento dos dois gigantescos dentes da frente) que o grande escritor é aquele que não tem estilo,»

alma disse...

Grande alf,

Espero que o jantar no Porto tenha sido bem digerido:)

Depois de o código Da vinci que pedi emprestado para ler tinha cureiosidade para ver a que se devia o sucesso,lembro-me que chorei a sério de tristeza pelo estado a que chegámos como é que uma merda fazia furor chorei lágrimas de vergonha pela pobreza a que nós como público leitor chegámos.
Depois desta experiência nefasta poupo-me e só leio em diagonal na fnac os que por aí andam a ganhar prémios e concordo contigo sobre a escrita do cardoso pires e generalizo é o“estilo”carrascão :)
Por isso poderei ser injusta na falta de curiosidade em os ler , nada sei do JR dos Santos como escritor para além de saber que é um bom locutor e que sabe piscar os olhos ao seu público.



Anónimo disse...

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