segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Será possível escrever bem sem raiva, sem remorso?

Se me perguntarem o que para mim é ser urbano ou sentir-me cosmopolita, falar-vos-ei sem pestanejar, de andar de metro mais entalado que a minha situação fiscal; de autocarros cheios de velhos que parecem ir para lado nenhum e de pessoas outonais que sentem demasiado frio para quem vive num país pré-africano. Um Novaiorquino falar-vos-ia de museus, de cinemas, de exposições e de passeios no parque. E de furacões, mas só hoje; um Berlinense, de varrer a neve no passeio, de copos de vinho francês barato em cabarés na zona leste e de dinheiro mal gasto por países que só conhecem do futebol; um espanhol não fala, resmunga. Mas para mim, deslocado de onde não há transportes públicos, cidade é sinónimo maior de engarrafamentos e de transportes públicos mais cheios que as vergonhas de jovens moças dos filmes porno dos anos 70. Portugal dos anos 2000-e-tal, pós-migração brasileira, já não deveria ser assim.

Mas a cidade é também garante de ver mulheres bonitas todos os dias. Não tenho o privilégio de fazer isto. Mas nada me impede o enquadramento, o desfoque do fundo, o equilíbrio da luz. Nada, exceto o sono. Ela era linda, entrou com a elegância que o frio da rua a ajudava a vestir. Mas o sono, a noite mal dormida e o balançar do autocarro levaram-me a focar tudo. Tudo, da velhota sonâmbula ao motorista-com-perfil-de-empregado-de-balcão-de-banco-da-baixa. Tudo menos ela. Às vezes percebo melhor isto de só se ver o que se quer. Às vezes percebo melhor os retratos que fundam na procura de pequenos traços de nitidez o prazer que se revela aqui e ali. Mesmo no prato. Um bem-haja, Esteves Cardoso.

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