«Quando passaram o portão, a noite abrira o seu ventre escuro e era a primeira luz da madrugada, onde dardejavam ainda os longínquos círios alimentados pela poeira estelar, quem recebia os dois rapazes, embora o céu permanecesse indiferente às oscilações íntimas destes dois pobres habitantes de um país perdido, apenas de muito em muito tempo atravessado pelo sumptuoso comboio dos dias fáceis. António Urze mergulhara na habitual tendência introspectiva, ainda surpreso pelo efeito produzido pelas palavras de uma desconhecida, devastação interior nunca alcançada por milhares de horas de auto-comiseração ou um cultivo esmerado da vitimização, duas actividade a que se entregava, habitualmente, de bom grado e com uma secreta aspiração de morte. Agora, alimentado pela força misteriosa dos protagonistas improváveis, o jogo tornara-se perigoso. Como se o distanciamento daquela mulher idosa, perante o objecto em causa (o seu coração dividido) - afinal, aquela velha pedante nunca tivera o prazer de o conhecer -, reforçado pela hipotética imparcialidade do observador desinteressado, se transformasse num muro intransponível, uma muralha, uma sala tenebrosa ostensivamente ornada de civilização, onde um embaixador protegido por luvas de pelica, bengala de alabastro e sabre de prata, se revestia de uma autoridade intangível aos olhos do nativo (pobremente chamado António), apenas munido com seus colares de conchas e dardos talhados em espécies arborícolas autóctenes, vergado perante uma soberania que o habitante do país colonizado sabe nunca ser possível fragilizar, ignorando a origem de poderes estrangeiros a que se inclinou a cabeça durante toda uma vida. Este aborígene nu e envergonhado, este Adão cada vez mais afastado do jardim das delícias, foi o primeiro a estugar o passo a caminho da estação de Cascais (cerca de trinta minutos a pé do local onde se encontravam) deslizando lesto entre as copas dos pinheiros e o estridente rugir pendular das ondas.
Ao lado do triste e abatido António Urze, caminhava o radiante e eufórico Pedro Fabriqueiro, ziguezagueando com sistemático acerto, desacerto, acerto, seguindo a linha fosforescente da estrada e calculando conceitos capazes de condensar uma cada vez mais incontrolável e inexplicável alegria, um burburinho doce, uma fanfarra silenciosa - com rufares de prazer espiritual e clarins de plenitude física - fazendo escolta ao batimento apressado do seu coração, uma consistência psicológica a nada comparável, a não ser, talvez, à serenidade quente de uma vela alagando de luz um oceano de trevas. Pedro Fabriqueiro projectava o fogo artifícioso da sua felicidade, sem se preocupar com definições sobre a natureza do seu estado, nem procurando fazer a crítica (mesmo que justa) da sinfonia que, para já, fazia as delícias do único espectador luxuosamente instalado no grande teatro da sua memória: ele próprio. E nesse palco, violenta e totalitariamente aceso de holofotes, armado de cortinas de damasco e mil papelinhos de celebração - enxameando o céu do desejo com os pássaros alados da satisfação -, aparecia o rosto bronzeado, doce e virginal, de Constança, na limpidez terna, infantil e perversamente sedutora que têm todos os rostos das adolescentes tardias, onde a vida ainda não cravou as garras sanguíneas da desilusão.»
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