Muitas noites sem dormir me tem valido a colocação de hipóteses em torno da validade da minha escrita: o que escrever? para quem escrever? Muitas noites me tem riscado a consciência o problema do valor: «Valor»? Qual o valor de uma carta de Joyce, enviada de Paris, quando este pede à mãe, sentada diante da lareira na distante Dublin, algumas moedas, uma vez que não come há 48 horas? Valor de escrever, seja num caderno adquirido contra a garantia afiançada por intermédio do cartão bancário, 1,65 euros - numa das variadas platarformas de distribuição de géneros deste grande Portugal -, ou digitando impressões num teclado negro, cujo alinhamento das letras foi cuidadosamente estudado, ergonomica e morfologicamente, de forma a facilitar altos padrões de conforto ao humano, aquele que pretende (pretenderá?) comunicar coisas. Comunicar pedaços de língua, farrapos de infância, a-e-i-o-u, o balde e a pá fundidos no plástico colorido, Carcavelos, Parede, a areia da praia, os vultos recortados pelo canto crepuscular da luz, pés escaldados no solo amado, a pátria de Camões, primeiro dia de escola, o sistema de erros ortográficos (cozer e coser), o sistema de palavras proibidas (foda-se), o alinhamento das prioridades (Lisboa, Portugal, Europa), o sistema de castigos implícito na língua (falar, dizer, gostar, amar), a poesia não se faz com verbos mas sim com substantivos, a substância, o tutanto das coisas, a espessura dos conceitos, (obrigado pela correcção), o sol e o Sol, separamos palavras e coisas (amor e Amor), acreditamos que as ideias se autonomizam dos signos - ah, as doçuras da significação - adolescentes que pedem a chave de casa pela primeira vez e sentem entre as mãos a doce curva de um seio (os espinhos na carne), palavras que são apenas ferramentas (tão eficazes quanto insuficientes), palavras que são as colunas em ruína de uma civilização devastada pelas legiões do tempo; palavras que são a chave do tesouro, o mapa do regresso, a bússola de nuvens, a bandeira da nação mais íntima, o motor do coração, o ímpeto do cavalo que sulca a terra, o cavalo de tiro, o boi manso conduzindo os cereais para sustento do longo inverno, linho de cobrir os mortos, água de benzer as promessas do futuro; agora que finalmente se suspendeu a chuva é que lhe sinto verdadeiramente a falta (falta - palavra tão polissémica quanto um catavento num dia de temporal), um bibelô, muito pouco para o que nos está prometido, diria o filósofo, mas tantos dias, tantos minutos, tantas horas (quantas horas num só minuto?) em que pouco mais somos do que um bibelô, o cão triste e malhado de branco e negro, orelhas caídas - sinal da decadência biológico - cão que já não sente o perigo, um anjo que toca a sua lira, a donzela que se curva, imóvel, de cerâmica branca, largando a lágrima no seu vestido vitoriano, o menino de louça caminhando a guardar ovelhas, soprando a sua flauta de cana (tão do gosto da minha mãe), colocado sobre o pano de renda, na cómoda do quarto, na madrugada dos dias, quando a casa banhada de morte, aguarda as primeiras lanças do sol, despedaçando a noite.
1 comentário:
continua que as tuas palavras tem muito para dizer
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