A primeira virtude do homem político é a destreza clarividente na escolha do momento para falar. O palavrão é a medula do rigor semântico, mas cortaram-nos essa possibilidade. Fizeram da opinião política uma casa na pradaria onde Michael Landon evolui nos seus jeitos de reverendo vendedor de automóveis, rodeado de crinças loiras que desconhecem o vernáculo, tão importante na estruturação da mente quando ela ameaça desmoronar-se aí pelos treze anos. Querem fazer da política, poesia, esquecendo que Platão e Aristóteles talvez expulsassem os poetas da república. Não discuto se Vilaret era um declamador ou um indivíduo que dizia poesia, uma vez que estas duas técnicas tão distintas - na expressão de Paula Moura Pinheiro, a Cleópatra que impera nos salões culturais da pátria -, ambas se constituem em possibilidades de grande beleza desde que cumpram a eficácia a que se destinam (eu não traduziria melhor a dúvida sobre se o Benfica deve jogar com Di Maria ou Coentrão na ala esquerda). Pátria? Pátria, uma palavra cara a Natália Correia, Manuel Alegre e ao membro associativo dos combatentes da guerra colonial que tropeça nos paralelipípedos salientes da calçada à portuguesa, depois de entornar dois litros do néctar de Kierkeggard (agora não me apetece ir à wikipédia ver como se escreve) e gritar juras de morte a Almeida Santos e Mário Soares. «Então e eu?» - diz o homem político aflorado (mas sem mariquices) logo na abertura deste post. Não estou esquecido. Sem dúvida, é ao homem político que a minha indignação presta crédito. Faltam-nos palavrões. Que seria da língua, da comunicação, dos índices demográficos, se os palavrões fossem defenestrados da república. Num filme de Bruce Willis, enquanto assaltam o arranha-céus, desfila perante nós toda a família de alusões sexuais, intestinais e crítico-profissionais que é possível imaginar, e isto em apenas 1h15 minutos de filme. Em Ponte da Barca ou em Monção, numa festa regional, do chefe dos escuteiros ao presidente da misericórdia, indo ao pastor, passando pelo Presidente da Freguesia e chegando ao cura de almas, todos fazem por bem olear a eficácia da expressão oral com a aceleração de sentido que há em cada palavrão. Entre nós, paneleiros de Lisboa, temos de escrever com casaca e punhos dourados. Lamentável. Depois, a incompreensão graça, como a urtiga nos prados de Beja. Tanto Henrique Raposo, texto de hoje no Expresso, como Patrícia Reis, todos os textos que quiserem, são dois dos mais originais sistemas nervosos centrais da República Portuguesa, tendo em comum uma estrondosa ignorância e um engraçado posicionamento de crítica etno-antropo-feirológica (que é a ciência fundada pelos tendeiros de Ponte de Lima) perante os comportamentos dos portugueses. Tanto um como outro se referem a falantes da língua portuguesa que nestes últimos dias lhes têm causado urticárias espirituais. Patrícia Reis por um comentário que tive a gentileza de permitir colocar no seu blogue, Raposo porque a nação o desilude no ódio a Alberto João Jardim. «Ao ler e ouvir estes comentários, tenho vergonha de ser português. O ódio politiqueiro a Alberto João Jardim é superior à compaixão patriota pelas pessoas que faleceram. De onde é que vem este veneno que transforma Portugal numa espécie de pátria do ódio ? Enquanto não tenho a resposta, tenho a dizer que um palavrão impublicável devia ser o título deste texto.» São tantas as pérolas que se desprendem deste colar rebentado pelo entusiasmo cívico que me é difícil ter dedos suficientes para as agarrar a todas. «Ódio politiqueiro» já sabemos que é a expressão que caracteriza científico-rigorosamente toda aquela opinião de indivíduos que não pensam como Henrique Raposo. Se Jardim é responsabilizado pela amplitude da catástrofe isso é politiquice, mas se Louçã é insultado a título de vestir camisa lilás, então isso é impulse, a mera tradução da clarividência democrática, o espírito liberal do povo, as forças vivas da sociedade civil recusando a canga do Estado, os cidadãos livres livremente manifestando a media res do espectacularmente bem distribuído bom senso dos portugueses, sempre lestos a recusar a radicalidade boçal dos politiqueiros radicais. Alberto João? Um homem com punhos de renda, um esteio da liberdade republicana, um liberal cujos ossos cantam hinos medulares e declaram amor apaixonado aos braços desnudos da alegórica mulher que às portas de Nova Iorque recebe, em liberdade (amen) as massas cansadas, os filhos sedentos de amor, e, claro está, as palavras aladas do grande homem político (o doutor Alberto João Jardim, homem a quem nada nem ninguém deve ousar fazer ligações com o ordenamento territorial da Madeira e a sua influência na dimensão do desastre). Como dizia o coronel Jaime Neves, comando e instrutor de Comandos, «Não há guerra sem mortandade. O mal é da guerra e de mais ninguém.» O mal é da chuva e de mais ninguém. Os mortos madeirenses não merecem discussão, nem rigor de análise, não merecem o questionamento das razões da sua própria morte, não merecem aspirar a sobreviver à próxima catástrofe. Merecem um arranjo de flores, uma elegia Presidencial, o silêncio do Henrique Raposo, a boçalidade de Alberto João, e o dedo acusador ao destempero das fúrias divinas que, como o ladrão na noite, aparece sem dizer o dia nem a hora. De acordo com Raposo, a liberdade é poder cuspir diariamente nos valores opostos aos nossos e publicar palavrões sempre que falha o zelo patriótico pelas pessoas que falecem em momentos que, sabe-se lá porque graça do criador do céu e da terra, deviam ser de suspensão política e de luto silencioso perante a catástrofe de que ninguém (a não ser Cristiano Ronaldo) será realmente culpado. Pois sabei portugueses e portuguesas: a culpa é toda minha, pela costante alusão a temporais, chuvas e humidades que aqui, neste blogue horroroso, emergiu variadas vezes de forma soez e mesquinha. Quanto à pátria do ódio, da inveja, da frustração, da sardinha assada, do queijo curado em azeite, dos peixinhos da horta jantados à sombra do casino da Figueira (um beijinho à Patrícia Reis e à Inês Pedrosa), dos cigarros SG, das aparições de Maria aos pastorinhos, dos pastéis de Belém, da pasta medicinal Couto e da louça das Caldas, com Zés Povinho de vergalho ao vento, tenho a dizer que a não compreensão da universalidade de tão belos sentimentos como o ódio, a inveja e a frustração, três das colunas salomónicas da literatura, representa apenas o imenso, o oceânico, o elefantino, o continental provincianismo de Henrique Raposo, um filo-americano que está para a América como o latagão de Caldelas está para a Avenida da Liberdade, como o peregrino de Rabat está para Meca, como o cavalo de D. Quixote está para os moinhos de vento imaginados pelo fidalgo louco. Já aqui disse: menos papéis federalistas e mais Fernando Pessoa se querem morrer somente depois de entender a fundo o provincianismo de todos os pseudo-cosmopolitas de aeroporto nascituros em solo pátrio. Seria benéfico para o arejamento da República se as pessoas, sempre que lhes desagrada qualquer coisa, identificassem no turbilhão sanitário da sua consciência qual a coisa que verdadeiramente lhes desagrada, em vez de serem coniventes com a pequena criatura, antropóloga-zarolha, que dorme em cada coração político, mãe de todas as generalizações de bolso descosido em calças compradas na feira de Carcavelos, a partir de supostas características dos portugueses. Pátria do ódio? Mas não era o liberalismo o sistema que faz do amor próprio e da competição a vaselina da cópula comercial, o polén do florescimento da nação e o fermento da prosperidade da República? Como amo profundamente Alberto João Jardim e não há palavrões impublicáveis: ó Henrique Raposo e se fosses pró caralho?
2 comentários:
Meu deus (notar bem a letra minúscula, tão a propósito da minha condição de boçal ateu) que isto está mesmo muito bom!
Adorei o final!
muito bom. palmas para ti.
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