Preparava-me para criticar violentamente postas do Jorge Costa e do Miguel Morgado, duas pessoas de altíssima estatura mental e tudo, que fazem o favor de nos oferecer ocasião para contemplar publicamente a sua análise filosófica, secundados por essa outra figura tutelar da direita-livros-comprados-na-Amazon que é Paulo Tunhas, quando me deparo com uma dificuldade irreparável: não se encontram quaisquer vestígios de ideias nestes dois textos. Ou melhor, encontram-se os trágicos vestígios de ideias bárbaramente assassinadas pela violência analítica com que os ilustres pensadores obrigaram as pobres ideias a servir a sua febril consciência científica da política como uma coisa de onde se atiram livros muito difíceis de ler e que eles, apostados em fazer trabalhar as ideias até à exaustão corporal, esgrimem com vertiginosa energia. Desesperado, ainda procurei agarrar a palha e joeirar com enérgico furor, a ver o que nos dizia o amontoado de restos mortais das esforçadas ideias. Saltitaram então o «contexto histórico europeu actual» - conceito de uma espectacularidade a toda a prova de rigor -, e «a ideia de que a uma "Nação" deve corresponder um "Estado", isto é, que as fronteiras da Nação devem coincidir com as fronteiras do Estado,» isto como ideia tipicamente liberal. A confusão histórica é de tal ordem que na convulsão sobram braços liberais, cabeças revolucionárias e pernas tipicamente despolitizadas. Agitei novamente. Saltitaram ainda John Stuart Mill, a Revolução francesa, o liberalismo e as despolitizações. Que será que nos pretende dizer Miguel Morgado: que a recorrência de Manuel Alegre na invocação da defesa de direitos - («"as pessoas têm direitos", os direitos "adquiridos", os direitos violados, "temos o direito de"»), de acordo com o humor indignado de Morgado, «Direitos, direitos, direitos.» -, é tornar estes mesmos direitos, entretanto já muito mais cansados pelo esforço esclavagista de Miguel Morgado do que pela alegada senha esquerdisto-conservadora de Manuel Alegre, no «alfa e ómega da reflexão política». Porquê? «Ora, é precisamente esta lógica de reduzir a política à ossificação do dogma dos direitos individuais que mais despolitiza a política. Mais até do que a sempre vilipendiada insistência na economia. A "economia", é bom não esquecer, é também questão de poder e de rivalidades.» Morgado não explica o seu dogma. Porque é que um discurso em torno dos direitos individuais despolitiza a política? E eu sei porque é não explica: porque não faz a mais pequena ideia do que está a dizer, e apenas é claro no seu espírito que não gosta de Manuel Alegre. Ao utilizar palavras como Política, Estado, Nação, Economia, Morgado é muito mais "falado" do que "fala" alguma coisa. Mas foram os instrumentos que lhe deram e agora talvez seja tarde para forjar outros. Além de que o preço de forjar as próprias palavras é ter de percorrer o calvário da criação. Mas isso levar-nos-ia longe. Morgado, duas notas:
a) a política não é, e nunca foi, coisa nenhuma que possa ser identificável por mim ou por ti, e por isso também a despolitização é um conceito tão vago como o próprio conceito de política. As pessoas criam discursos para formar exércitos, impressionar uma namorada, conseguir um juro mais baixo, tirar uma nota mais alta num exame, conquistar votos ou filiar apoios, e procuram persuadir a cidade ( e a família, quando não os amigos) pela retórica, instrumento que permite criar consensos em torno dos espaços entre indivíduos, das fronteiras que esses indivíduos podem ou não pisar ou dos meios à sua disposição para dirimir os conflitos, sempre que esses espaços são violados. Rómulo matou Remo porque este passou a fronteira reconhecida por ambos. O que nos impede de nos matarmos uns aos outros, sempre que passamos a fronteira, é a capacidade de convencer e sermos convencidos por discursos. E aqui entronca a segunda nota.
b) ao contrário do que pensam os meus amigos (Morgado, Raposo, Costa e tutti quanti), os discursos não obedecem a nenhuma verdade pre-figurada, nem podem levar-nos ao caminho do desenvolvimento, muito menos com as balelas da "ciência política", e é por isso que Miguel Morgado é capaz de escrever um post em que a análise de grande profundiade é apenas uma lança no flanco de Manuel ALegre (e é legítimo que o faça, apenas recomendamos mais elegância e energia no golpe). Morgado procura, numa série de abstrações e citações pedantes, tornar os "direitos", invocados por Alegre, uma acção discursiva desajeitada que remeta para coisas como a rigidez do código do trabalho (direitos) os subsídios vários do estado social (direitos) ou mesmo a aprovação do casamento gay (direitos) de forma a que no final do seu post a economia (como arena de rivalidades e de luta pelo poder) surja novamente como o verdadeiro saber, mascarando pela enésima vez aquilo que sempre foi a a natureza genealógica da "economia política inglesa" (discurso técnico que esconde sob a linguagem da abstração numérica - a objectividade da quantificação - a subjugação das franjas mais pobres do mundo) quando o espaço do poder, como Miguel Morgado sabe, ele que leu tantos livros, sempre foi, essencialmente, o da linguagem. Por isso, Manuel Alegre assusta tanto.
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