segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Um comboio pode esconder outro


Para além do tempo de duração de uma viagem Cacém-Rossio na linha de Sintra, enquanto passam na janela farrapos de nuvens, espirros de pombos ondulando como um leque, e letreiros luminosos de pastelarias, não existe nada de mais consensual do que o conceito de pós-modernismo na agitada história do pensamento ocidental, pelo que as solicitações para qualquer esclarecimento neste domínio serão tão vãs como um bomba de oxigénio nas mãos de um indivíduo que acabou de se afogar. Descontando a parte que cabe à estupidez de cada um de nós, seres humanos que vamos a caminho da decomposição (que bem o merecemos), o pós-modernismo tem qualquer coisa de vernáculo, o calão com que se insulta o primo na aldeia; chama-se pós-moderno como quem diz «és um filho da puta». Como calcularão, eu não entendo nada destas matérias, muito menos das que implicam candidaturas à verdade, sobretudo quando a verdade, para o “cientista”, se prova com a performance da ventoinha mágica na tarefa de esfacelar cenouras em vinte segundos. Se substituirmos ventoínha mágica pela compreensão do movimento dos astros, digamos que a coisa se amplia no seu impacto mas não varia na insignificância do seu alcance para quem aprecia as movimentações do vento no final do Outono. (Peço que não invoquem aqui a vida eterna, a fim de evitar o vómito do autor destas linhas). Quem entende, e muito, acerca destas matérias pós-modernas é o Vasco Campilho e o Henrique Raposo. Vou por isso recorrer à sabedoria qualificada dos dois ilustres filósofos políticos (aqui o leitor deve tentar não rir). Quando Vasco Campilho comenta «O bio-poder na obra de Henrique Raposo» penso que estamos conversados sobre o que é o pós-modernismo. O pós-modernismo é aquele estádio do capitalismo tardio em que todos metem golos com a mão mas Paulo Bento não comparece a comentar na conferência de imprensa a “roubalheira” perpetrada contra os seus jogadores. Quer isto dizer que já não se aceitam metanarrativas sobre a verdade e, portanto, todo o golo metido com a mão, desde que sancionado pelo juiz (que é uma produção humana referente a objectivos parciais e tão humanos como o suor que lhe escorre das narinas (ao juiz) quando sopra no apito uma grande penalidade que [não?] existiu) é na verdade um golo perfeitamente aceite como funcional no marcador do jogo (Jorge Jesus diria “score”). Como se depreende desta alusão ao poder de assinlar grandes penalidades, a matéria mais atingida pelo pós-modernismo terá que ser inevitavelmente a configuração do poder, certo? Errado. Mas oiçamos antes de mais a autorizada opinião de Vasco Campilho sobre o pensamento de Foucault: «Não fiquei, contudo, com a sensação que Foucault visse o poder como um sistema desgovernado: nos tais centros e pontos de apoio que animam as redes de poder, há sujeitos dotados de vontade, tal como a "avó [do Henrique] desviava a água através do sistema de canais". Vendo bem, a metáfora da rega casa-se lindamente com a noção foucaldiana de bio-poder. É que regar e fazer carreirinhos é exercer um poder sobre a vida: não um poder que mata e deixa viver, mas um poder que dá a vida e deixa morrer (neste caso, às hortaliças).» Isto é tudo tão bonito (a metáfora da avó de Raposo a regar a horta, notando-se desde logo que Campilho nunca na vida colocou os pés no em qualquer sistema de rega tradicional, as noções foucaldianas, a ternura de Campilho pela “obra” de Raposo, enfim todo um sistema de nostalgias intelectuais que nos sobrem pelo intestino grosso) mas acontece que temos que prosseguir, não podendo nós erguer aqui três tendas para contemplarmos a face de Deus e as noções foucaldianas explicadas por Campilho, com Raposo em pano de fundo. Sendo assim, o que nos diz Henrique Raposo em contra-resposta ao contra-comentário de Campilho? «O biopoder – segundo Foucault - está em todo o lado, aliás, está dentro das pessoas. É uma espécie de consciência colectiva que toma conta da agência de todos os indivíduos. É uma espécie de nevoeiro de Carpenter que domina as pessoas sem estas o sabem (Marcuse também tentou esta charada: as pessoas são controlados pelo poder capitalista, sem saberem que são controladas...). »Ignorando o espectáculo das metáforas cinematográficas mais desconexadas da história da blogoesfera, sinto dentro de mim o biopoder, mesmo junto ao folhado de carne e à imperial tomados à pouco na pastelaria da Amadora, um pouco antes de assistir à forma como um indivíduo chamado Lanzarotti (isto só pode ser a gozar) é capaz de insultar na sua própria casa o treinador do Benfica. Depois das três piruetas encarpadas que quase valeram ao leitor a cadeira de rodas da análise política, devo perder-me aqui do meu objectivo inicial (explicar o pós-modernismo), pois que o pós-modernismo se explica a si próprio pelos mais insuspeitos representantes da produção institucional de consensos em torno da autoridade da tradição, neste caso a metanarrativa das liberdades constitucionais e da individualismo político: dois meninos que não fazem a mais pequena ideia do que estão a dizer mas insistem em produzir discursos convencidos de que nós tomamos as palavras pelas coisas. Qualquer um que digite num motor de busca o nome de Foucault demorará aproximadamente dois minutos a perceber que Foucault nunca foi um teórico do poder (ele próprio o afirmou várias vezes, na primeira pessoa) mas sim alguém que procurou fazer a história da subjectividade (daí as batalhas mortais contra a ciência), ou seja, na tradição inaugurada pelas “Luzes”, conjunto de ideias nada pós-modernas e que é “ao mesmo tempo, início da modernidade europeia - como processo permanente que se manifesta na história da razão - e desenvolvimento da racionalidade e da técnica – o que leva a colocar a questão “da autonomia e da autoridade do saber”, mas não simplesmente como um episódio na história da ciência. Daí a fractura entre os que como Chomsky pretendem, com sua “piedade”, que se guarde viva e intacta a herança da Aufklärung, e os erradamente conotados com o pós-modernismo, autores como Foucault, a quem indivíduos como Henrique Raposo, com manifesta dificuldade na leitura da língua portuguesa, qualificam como capazes de comer iluministas ao pequeno almoço. É tão dificil explicar aqui porque razão estas confusões são recorrentes (tanto como resolver problema de adpatação de extremos esquerdos à defesa das lateraia) que prefiro remeter o leitor para as páginas centrais da Revista TV 7 dias, que é onde se colhem com mais proveito analogias sintomáticas das relações entre discurso e verdade. Como diria Foucault, de quem recomendo a leitura, se era isso o pretendido, e senão tiverem que descascar as batatas para o jantar, «Esta piedade (dos que julgam a racionalidade universal como algo benéfico) é claramente a mais tocante das traições. Não são os restos da Aufklärung que se trata de preservar, é a questão mesma deste acontecimento e de seus sentidos (a questão da historicidade do pensamento universal) que é preciso manter presente e guardar no espírito como o que deve ser pensado.». Peço desculpa, mas o revisor pediu-me o bilhete.



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