O poeta e matemático M.S. Lourenço, no momento da sua morte, mereceu grandes encómios a Francisco José Viegas, para não falar da edição de toda a obra pela Assírio e Alvim, edição cujo peso (literalmente) serve tanto de arma de defesa pessoal como de contrabalanço para erguer uma eventual gaiola de papagaio no quintal a partir dos princípios de Arquimedes, desde que se ache nas imediações, claro está, um ponto fixo. Mas o acontecimento que me obrigou a escrever algumas linhas e a abandonar aquele momento do Trio de Ataque, em que Rui Moreira procurava explicar como é que, não estando em causa a justiça da vitória do Benfica, se podia observar uma manifesta interferência de Lucílio Baptista no lance da falta sobre Angelito, prende-se com uma entrevista de M.S. Lourenço, em que o poeta, e especialista na obra matemática de Godel, afirmava que o acontecimento mais importante da sua biografia intelectual de adolescente foi ter encontrado numa livraria em Sintra um livro em francês (o leitor encontra-se já agoniado perante a conjunção de factores como intelectual, adolescência, livro em francês e Sintra, o que me leva, desde já, a endereçar um pedido de desculpas), «cujo título continha uma combinação de palavras tão enigmáticas como a esfinge: Introduction à la Philosophie Mathemátique de Bertrand Russel». No momento em que estas palavras foram convocadas pela acção descontrolada do meu sistema nervoso periférico, com polarizações e despolarizações eléctricas de todas as minhas membranas celulares, tornou-se claro que M.S. Lourenço, sendo um gigante do pensamento lógico, quis transportar para a literatura este tipo de epifanias retrospectivas acerca da importância dos livros na adolescência. Não seria necessário indagar muito mais, depois de lidas as declarações onde o mesmo Lourenço se refere a uma «certa concepção afrancesada da filosofia como uma forma inconsciente de história universal das ideias vagas», uma vez que o problema dos anglófilos e da sua incapacidade congénita de entender a tradição francesa (que tanto pariu o discurso do método de Descartes, quanto todos debitavam a metafísica aristotélica, como pariu a crítica do discurso de Foucault, quando todos debitam a metodologia cartesiana do método) é tão clássico como a dificuldade dos revisores da linha de Cascais em entender as razões que levam alguns passageiros a viajar sem bilhete, até porque não é necessário qualificar a crítica, quando o argumento se desqualifica a si próprio. Remeto antes o autor para os versos fulgurantes de M.S. Lourenço, do poema «O sutra de Patrícia Rimpoche», publicado na revista Colóqui Letras, e reeditados pela Assírio Alvim no referido calhamaço: «O choque da inspiração global,/ A descarga contínua da corrente,/Rasga o cérebro em carne viva./ Instantânea, pois, a descoberta./ Mas o milagre é cagar de manhã,/ Espontâneo, e limpar o cu à relva.» Não sei se terá sido a erudita formação em Oxford, ou a experiência alucinogénea de Berkeley, o facto é que isto é mau, muito mau, precisamente porque pretende fundar num terreno de supostas ideias vagas, a poesia, a oposição a valores que M.S. Lourenço não admitiria na sua disciplina de especialidade, a lógica. Como tão bem sabe um ex-guarda-redes alemão do Benfica, a quem esta época, se o objectivo é conquistar o título, eu trocaria já por Di Maria, a vida é fodida; expande-se para segmentos cerebrais onde nem os dotes taumatúrgicos de Jesus Cristo, soprando ou assobiando, nos valem a salvação da tragédia que é estar vivo e não ter nada a dizer, porque tudo é tão simples, como o facto de que nem sempre querer é poder.
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