Há alguns anos, um desastre de automóvel veio interromper o esforço criativo de um estudante de medicina autor das seguintes ideias: «Eu defendo que o difícil é trabalhar o simples sem dar cabo dele. Complicar e baralhar é bastante mais fácil». Nessa época o Sistema Nacional de Saúde era ainda, e quase exclusivamente, responsável pelos cuidados médicos, o que possibilitava aos jovens terapeutas desenvolver actividade paralelas, fossem as teclas ou o golfe, embora isto não esteja de forma alguma relacionado com os problemas estéticos que procuro aqui abordar. Na verdade, todo o problema (que não tarderei muito a revelar) foi-me suscitado pelo título do mais recente «Projecto» no panorama musical português: «Amália, Hoje». Ficamos sem saber porque razão Amália, Hoje, é necessariamente diferente de Amália, Ontem. Isto deve significar que a utilização do vocábulo «Hoje» implica uma suposta actualização, entenda-se aqui actualização como a introdução de variações pseudo-modernizadoras por via de cornucópias electrónicas que sintetizam a versão analfabeta de um arranjo erudito para orquestra sinfónica, o que, diga-se de passagem, significaria, se talento houvesse para tanto, uma incursão nos anos 40, 50, resultando toda esta cambalhota num Amália, antes de Ontem. O problema é que Amália não compôs a música que interpretava, o que me leva a considerar que a suposta actualização incide sobre a interpretação vocal da fadista levada a cabo por Sónia Tavares. Como esta hipótese tem tanta verosimilhança como a utilização de Pepe a trinco, só pode conceber-se que Amália, Hoje, significa a necessidade de se ouvir Amália pela enésima vez, isto se descontarmos as seiscentas e cinquenta e sete Marizas que entretanto medraram no território nacional, com ou sem apoio estatal, o que inevitavelmente nos devolve à conclusão de que difícil é não baralhar e construir uma carreira «artística» sem baixar as calças à rentabilidade do mercado, isto se não formos interrompidos, meu caro Sebald, por um elegante acidente de automóvel .
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