Motivos que não pretendo explicar levaram-me ao Barreiro. Um local onde a estranheza da paisagem se transforma na clareza de um estuário inundado por pequenos bancos de areia, moinhos em ruínas, renques de árvores distorcidas pelo vento, casas desordenadas onde assomam velhas de preto a experimentar com as mãos enrugadas a temperatura da atmosfera, restos de chaminés erguendo-se no espaço cinza, furando a espessura do céu com uma energia que, não sendo móvel, sugere movimento, levitação, a ressurreição das coisas subitamente imobilizadas, ou chaminés que são um altar para as cegonhas contemplarem a terra dos homens, e ao fundo paredes de betão como panos de cena de um teatro há muito abandonado. Devia lembrar agora qualquer coisa pertinente a propósito da mudança e da ruína. O problema é que o esquecimento sempre foi conveniente ao homem no sentido em que trava a assunção de uma ideia causadora de mal-estar. Mal-estar. Parece que no decorrer de 2666, Bolaño refere um sonho que inclui Yeltsin, a lei da oferta e da procura, e muitas reflexões sobre a natureza humana. A mim somente me ocorre uma aula repleta de alunos perante a fraseologia onírica de um filme alemão com referência a Lenine, acontecimento ordenando algures, entre os dias do ano que agora se precipita no seu fim. Parte dos meus antigos alunos levantou-se, então, e abandonou o filme, antes do final. Alguns, muitos, muitos mais do que esperava, aguardaram o final, que é como quem diz que entenderam o sentido das imagens sobre o funeral burlesco de uma mulher deslocada da realidade na sua relação de fidelidade com os outros, que é como quem diz que entenderam o sentido da morte. A morte é como a indústria, não falha e oferece instrumentos de clarividência que hierarquizam as sociedades. Haveria que estudar que relações de velovidade ligam a morte e a indústria. Hoje sabemos que a indústria do Barreiro se estabeleceu naquele local também por intermédio das facilidades de comunicação oferecida pela navegação do Tejo, pelos caminhos de ferro que, vindos da planície, aqui aportavam, despejando malas, ferramentas humanas. A indústria floresceu, animada pelo governo particularmente esclarecido, e providencial, de Salazar: «no âmbito dessa politica foi inaugurada em 1957 a Barragem do Maranhão, situada em Aviz (Portalegre)», local este, diga-se de passagem, onde me foi dado conhecer, pela primeira vez, as múltiplas sensações do vómito múltiplo por motivos que também não pretendo aqui explicar. Em todo o caso, a terra está marcada com os vestígios da indústria pesada: neste mesmo local produzia-se «Ácido Sulfúrico (vulgarmente conhecida por Contacto 6) com uma capacidade diária de 625 toneladas/dia.» Como pode ler-se aqui «a Administração da CUF sempre foi buscar ao estrangeiro o que de melhor e mais moderno havia, de forma a reduzir a sua poluição fabril, alias nos anos 60 a CUF dispunha de um sistema de controlo do ar na vila do Barreiro.» Aos senhores administradores o nosso muito obrigado. O caminho pedestre favorece a reflexão, isto se não nos ocorre suspender o pensamento por uns cavalos negros que correm por vezes na cabeça e dificultam a rapidez do raciocínio: parece que pára, o pensamento. Não parei de pensar, nem o caminho se tornou mais curto, pelo que é necessário referir também a violenta greve de 1943, o Barreiro invadido pela guarda, sendo decretado o recolher obrigatório; os portões da CUF fecharam por mais de um mês e foram despedidas dezenas de trabalhadores, perseguidos e presos os supostos cabecilhas que não conseguiram fugir». Por motivos que não pretendo agora explicar, é particularmente difícil habitar lugares onde o tempo não corre num sentido linear e o corpo se sente muito mais cansado do que seria de esperar.
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