Podiamos conversar sobre a relação entre ciência e matematização do real (a estatística como instrumento metafísico que nos salvaria da morte). Grande parte dos cientistas políticos (cientistas que são políticos) recorrem quotidianamente a este número circense - crítica dos intelectuais que não leram os livros correctos e que, por isso, padecem de um desvio flagrante na leitura dos factos. O trabalho destes intelectuais é abrir os nossos olhos, não recorrendo ao lodo (feito de saliva divina e um pouco de areia) mas a listas infindáveis de artigos publicados em língua inglesa, em que tudo se torna inteligível apenas porque se mostrou, com suposta clareza, como a realidade se tornou possível. Dizem com sistematicidade: eu tenho uma ideia de justiça, eu tenho uma visão sobre os problemas sociológicos dos partidos, eu tenho uma solução para o aprofundamento democrático da vida pública. Da vida pública, meu deus, da vida pública. «O desenvolvimento económico do país, ou mesmo a reforma da justiça, não valem um só dos teus cabelos», frase que me perturbava insistentemente durante a leitura de um romance que sugeria, com delicadeza, a tragédia de não possuirmos identidade unívoca. Acontece que ninguém ensinou aos ditos cientistas que isto fervia de consequências para a organização da realidade. Isto estando eu algures entre Moscavide e a Azambuja, avistando um farol muito ao longe, entre a neblina que subia do mar da palha e um pano de seda azul, ondulando ao vento e pulvilhado de nuvens, um lençol marinho cuidadosamente estendido sobre a linha do horizonte. Isto sabendo eu que a multiplicidade das imagens é o mais claro sinal da decadância pequeno-burguesa e tendo, como é evidente, um grande rio passando à minha frente.
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