domingo, 19 de julho de 2009

«E o fim da tarde inspira-me; e incomoda»

Sem grande elaboração em torno do conceito de normalidade - ou de como essa normalidade nos morde as canelas qual cão raivoso - a obsessão com a gripe começa a instalar-se silenciosamente. Já sei que o caro leitor vais esgrimir furiosamente a preocupação com a dignidade da vida e agitar descabelado a experiência de quem assistiu ao sofrimento atroz dos contagiados. Não se enerve, eu conheço - ou julgo conhecer - a via sacra do medo (nós os que acreditámos na catequese até aos nove anos vivemos tempo suficente perante o horror do inferno). Vem a propósito uma velha canção popular sobre encomendação das almas: cuida da morte que o inferno é mui fundo. A preocupação com a dignidade da vida talvez não esteja em tremer cobardamente quanto chega o momento em que a brincadeira perde a graça: é claro que estou preparado para ver retornar ao curral (a igreja) todas as cabisbaixas ovelhinhas que fingiram não cuidar de assuntos sérios e andaram nos últimos decénios (talvez desde os anos 60) na tripaforra. Também espero, com benévola paciência, o esfregar de mãos dos sacerdotes - de olhos brilhantes - acompanhando a cotação da vida post-mortem, isto do ponto de vista das expectativas. Eu - como os caros leitores já sabem - fico onde sempre estive: à cabeceira de Cesário, quando a tuberculose veio e o supreendeu em plena vitalidade poética. Os testemunhos de familiares não fingiram cenários de esperança. O próprio Cesário tinha crescido com a enorme mágoa de uma irmã, a alegria da casa - rapariga muito bela, segundo todas as fontes - que lhe morrera aos 19 anos, deixando um rasto de sombra pelo resto dos anos a que lhe sobreviveu. Cesário fechou a porta, largou os papéis em cima da secretária e foi descansar. Não se acobardou, não correu a hospitais, nem a vacinas, não foi inensar-se com os pózinhos da salvação, não pediu protecção, não confiou no governo, não implorou informação clara e transparente. Recolheu ao seu quarto, numa quinta do Lumiar. Tinha 31 anos. As últimas palavras tornaram-se famosas. Quando lhe perguntaram se pretendia alguma coisa, perante a agonia, Cesário terá respondido: «Não quero nada, deixem-me dormir". Corria o Verão de 1886. Mais precisamente, o dia 19 de Julho. Tal como hoje, 19 de Julho, dia em que não há uma puta de uma televisão que seja capaz de trocar uma inutilidade sobre a gripe por uma palavra de quem sabe como vencer a morte.

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