O facto de vivermos num sistema assente no acto eleitoral – repare-se que a palavra acto envolve o gesto de votar numa tonalidade solene – concorre para uma certa dificuldade de manter a rotina sempre que atravessamos, como dizer, o referido acto eleitoral. Simplificando: as recentes eleições resultaram numa saraivada de declarações para a qual não temos conseguido encontrar guarda-chuva adequado. Hoje, folheando o Público, deparei com um notável artigo, assinado pela causídica Isilda Pegado, intitulado «As eleições europeias, a crise e a catequese do Povo». A associação destas três inegáveis preocupações da actualidade (Europa, Crise e Catequese) logo acendeu mim o archote da curiosiade. Além do mais, sendo um afincado admirador dos dotes argumentativos da Drª Isilda, logo me imaginei cruzando as provocadoras fronteiras do pensamento político social democrata, esses verdejantes prados, repletos de boninas, regatos cintilantes e lojas de chineses (chineses convertidos à militância politico -partidária) onde é possível encontrar as obras escolhidas de Francisco Sá Carneiro, encadernadas em plástico laranja fluorescente. O facto é que o artigo confirmou todas as minhas expectativas. Ou melhor, quase todas, uma vez que não previ, pela simples observação do título, que, durante a leitura do artigo, o beato Francisco me segredaria ao ouvido, num dardejar de asas celestes, as palavras Paz, pão, povo e liberdade, estamos reunidos no caminho da amizade, adaptação santificada do hino social democrata escrito por esse neo-liberal dos quatro-costados, Paulo de Carvalho. Mas não cedamos à tentação de montar a tenda nos territórios da ascensão divina. É necessário fazer justiça à Drª Pegado que descreve com rigor e rara exactidão os debates dos últimos meses: «o neoliberalismo era apontado como o carrasco de si próprio. Muitos foram os que catequizaram neste sentido pedindo, ou emitindo mesmo a certidão de óbtio do neoliberalismo». Com efeito, foram às paletes os comentadores, políticos, escritores, advogados, vendedores de fruta, pedintes romenos, taxistas de Alhos Vedros, ciclistas ocasionais do Cartaxo, peixeiras da Nazaré, intelectuais embriagados dos cafés de Aveiro, treinadores de Associações de futebol do Concelho de Alijó, janotas decoradores passando, por acaso, no Chiado, polícias de giro, sindicalistas filiados no Sporting, enfim, todas as mais raras espécies de habitantes portugueses, que decretaram, todos eles, a uma só voz: o neoliberalismo enloqueceu, pervertido pela arrogância epistemológica das suas próprias soluções, arruinado pelo mau whisky e pelos casinos de Las Vegas, meteu as mãos à faca da cozinha e cortou os pulsos, qual carrasco de si próprio, ali mesmo, em Wall Street, perante a indiferença dos transeuntes. Logo apareceu uma segunda multidão, versada na prática amanuense, munida de todos os requisitos burocráticos pronta a emitir a devida certidão com que se confirmou o óbito. Contudo, se o leitor está já impressionado com a vivacidade de cores com que a Drª Isilda Pegado pinta estas complexas cenas da vida moderna, devo preveni-lo de que ainda estamos à porta dos mais luxuosos palácios erigidos em honra da lógica argumentativa. Veja o caríssimo leitor a destreza com que a ex-deputada do PSD lança a sua última seta fulminante contra os teóricos do socialismo: «A catequese serôdia do Estado intervencionista tem grandes paladinos da palavra mas tem contra si o povo.» Apenas os predestinados poderiam modelar esta crítica paradoxal aos que, sendo paladinos da palavra empreendem, contudo, uma seródia catequese. Catequese, portanto, titubeante, porque defensora do Estado ilusionista, optimista, progressista, intervencionista, mesmo que revestida pelos ornamentos retóricos dos que ainda têm a ignominiosa perversão de querer escrever ou falar correctamente a língua portuguesa: canalhas, que não há outro conceito que os defina. Mas a Drª Isilda remete-os ao seu lugar de origem: a insignificância. E acrescenta: «Em matéria social o Estado é subsidiário da sociedade, isto é, só deve intervir quando a sociedade não tem resposta adequada. O Estado monopólio mata a sociedade. A Europa tem uma cultura nascida de uma experiência de 2000 anos de liberdade que não hipotecará por palavras.» Neste momento, confesso que estou lentamente a procurar erguer-me, novamente, do empedrado da esplanada onde escrevo estas notas, fulminado por esta verdade que me racha o crâneo com a lucidez de Salomão e a fúria incandescente de Paulo, e vem até mim, pela noite dos tempos, atraída pela voz firme da Drª Isilda Pegado. A Europa, essa realidade objectiva que todos sabemos onde começa e acaba, tem uma cultura - uma cultura - como tem uma só língua, uma só prática, uma só técnica, tem uma cultura que é, simultaneamente, uma experiência, no sentido em que tem uma cultura que permanece e se rectifica – objectivamente, uma vez mais, digamos – através do tempo, experimentando, bebendo o conteúdo dos factos, pelo copo cristalino da observação, a Europa tem, portanto, uma cultura experimentada com 2000 anos; mas 2000 anos porquê, porque não 2500 com Platão, ou 400 com Galileu, uma vez que tem uma experiência? A verdade é que a Europa tem um cultura com 2000 anos e, mesmo assim, não consigo, meu deus, eu não consigo parar, neste momento, de cabecear repetidas vezes a parede.
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