O caro leitor não levará a mal que voltemos a um tema recentemente focado: os debates em torno da educação. Ora, esta actividade, hoje tão difundida entre espíritos brilhantes como outrora o jogo do chinquilho entre os camponeses, pressupõe grandes méritos intelectuais, um esforço ininterrupto, horas de leitura, exaustiva, da Harvard Educational Review, bem como larguíssima experiência dessa actividade absolutamente punitiva que se chama ensinar. Entretanto, ninguém tem reparado que o problema da educação, como muitos outros na história das sociedades, é muito mais simples de compreender do que à vista desarmada nos pareça. Também como em muitos outros aspectos a questão está em escolher um angulo de visão sistemático e crítico. O que é o problema da escola pública? Simples: é a dificuldade em democratizar um ensino liceal (básico e secundário) numa população com índices de analfabetismo elevados, em 1974, seguindo-se um investimento em capital físico e humano coordenado pelo poder público. A necessidade de educação, como é evidente, não correspondeu a uma missão ontológicamente estabelecida pela comunidade, qual raio crístico a iluminar Paulo na estrada de Damasco: é antes o resultado do processo de industrialização e das necessidades de qualificação, depois de choque petrolífero de 1973, para fazer funcionar uma economia a europeizar-se e com necessidade de se terciarizar. Este plano educativo implicou, como todos sabemos, a contratação de milhares de professores numa população completamente avessa a hábitos culturais escolarizados (António Nóvoa escreveu com propriedade sobre isto). Isto faz dos professores monstros? Não, mas implica que olhemos com alguma calma para o que se seguiu. Como em muitas outras classes profissionais (veja-se o que está a acontecer na Ordem dos Advogados) este crescimento do ensino, na medida em que cresceu desligado de uma tradição enraízada de frequência da escolas, com hábitos de avaliação, justa retribuição dos professores, dignificação do seu importantíssimo papel social, relações fortes entre as escolas e a comunidade, começou a entrar em roda livre quando o paradigma político (neo-liberal) começou a colocar problemas ao financiamento dos serviços públicos (o senhor Roberto Carneiro não é um iluminado, apenas está na charneira do impacto do neo-liberalismo nesta república atlântica). O que ainda hoje se verifica é a dramática ruptura entre o poder público, eleito democraticamente e sujeito a escrutínio eleitoral, e a constituição de uma classe profissional (tal como os juízes ou os médicos) que entretanto gerou a sua própria lógica de interesse, autónoma e completamente desligada do deus criador (os ministérios da república). Para quem conheça um pouco de história o fenómeno é conhecido. Weber, uma espécie de armado em intelectual de café, esplicou isto de forma clara. António Hespanha, fez o mesmo em relação aos juristas e à criação do Estado no século XVII. A própria profusão de livros sobre educação nas prateleiras das livrarias, absolutamente escandaloza na proporção da sua importância relativamente à biologia, a matemática, a filosofia ou mesmo a história - e a reflexão educativa que Paulo Guinote apresenta como vital para definir políticas educativas - são já uma perversão do sistema de ensino público. Tal como em qualquer outro plano da vida social, invocar saber especializado para criticar uma política educativa é, no minímo, estúpido. E lá temos, novamente, a confusão entre técnica e política, um engano a que a sociedade industrial não consegue escapar. A escola está na iminência de se começar a servir do Estado, em vez de servir o Estado, que é, para os mais distraídos, a emanação da soberania democrática. Não há consciência de classe, nem fé na absolvição da história que possa resolver este diferendo. Ou então podem fazer como eu, que não acredito um corno no estado de direito liberal como não acredito um chavo no papel de escolas habitadas por professores que acham normal deixar posts como os que podem ser longamente contemplados no blogue A educação do meu Umbigo.
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