terça-feira, 9 de junho de 2009

E correremos junto à praia, de mão dada, levados pela luz da esperança e o desígnio dos deuses a caminho do banquete das delícias

Despeço-me hoje de João Gonçalves. Sinto-me rendido, derrotado, desfeito, arrasado. Estou dorido. Atravessado pela excelência e pela verdade. Afirmo a minha conversão. As frases curtas de Gonçalves farpeam a esquerda caviar mas também a esquerda operária, a esquerda recolha do lixo, a esquerda proxeneta, a esquerda marialva, a esquerda lava mais branco, a esquerda snak-bar, a esquerda presunto de chaves, a esquerda chouriço de porco preto. Por isso, vou passar as próximas semanas a apanhar os bocados de mim mesmo (isto não é uma citação de Alfredo Marceneiro mas temos de reconhecer a sua influência na mais recente literatura portuguesa). Encontro-me, caro leitor, verdadeiramente espalhado pelo chão, depois de ter sido desfeito pelo humor mordaz, pela acutilânica laminar, pela ferocidade pontiaguda de Gonçalves. É triste termos que reconhecer a nossa insignificância diante de um homem que nos ofusca com as suas oscilações vertiginosas entre o rigor e a ironia. No rescaldo das eleições, afirmou: «A dra. Ferreira Leite é a grande vencedora desta noite. Anda há meses com tudo e todos - de fora e de dentro - contra ela. Esquadrões de adversários, internos e externos, fizeram tudo para a apoucar, para a reduzir a pouco mais do que nada, para fingir que ela não existia. Pois existe. Também Manuela Ferreira Leite percebeu que existe e que, finalmente, provou isso a si mesma. E o país percebeu que a verdade compensa mesmo quando é dura. Parabéns, dra.Ferreira Leite. Amanhã há sol e vidaCom efeito. Vou aproveitar o tempo, percorrer as falésias meridionais da Costa da caparica, almoçar no restaurante o Barbas, contemplar o mar, desenhar num pequeno guardanapo as possibilidades estatísticas de Jorge Jesus ser despedido antes das invernosas comemorações da revolta contra Miguel de Vasconcelos em 1640. Entretanto levo João Gonçalves no coração. Portugal não está perdido, não sucumbirá no abismo das nações envelhecidas. Porque há ainda em Portugal um português capaz de combater esquadrões de adversários. Estivessem João Gonçalves e Manuela Ferreira Leite em Alcácer Quibir e tudo seria diferente. Na ala esquerda, de gualdrapa dourada sobre o cavalo, de aljuba pendente sobre os ombros, implacável no olhar com que varreria o campo herético, ferveria a violência no olhar de João Gonçalves. Só com a respiração, incendiada por um zelo ardente, espalharia o terror no campo muçulmano, Gonçalves, orgulhoso do seu loudel, as calças justas e soladas, a cintura, bem marcada, como todo o soldado, grande, que quer à pátria mãe - o Portugal dos pequeninos - mais que à própria vida. Ferreira Leite, na ala esquerda de D. Sebastião, os arguanéis de mulher guerreira, vestido de cinta subida, toucado composto por uma longa trança, o decote quadrado, impondo ainda mais terror ao campo muçulmano, cuspindo bolas de fogo, enquanto varreria o terreno da batalha com um olhar de trevas, prometendo o ferro e o fogo, o resgate das chagas de cristo, a devolução do chão sagrado de S. Agostinho às orações dos monges trinitários; e, claro está, a lâmina da verdade arrasando muçulmanos com foice em seara madura. Onde estaria nesse dia a lança do infiél senão prostrada no deserto? Inimigos externos e internos, qué de vós quando tão grande geração se levanta sobre os anões portugueses?

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