O caro leitor decerto reparou que o sol regressou a esta faixa atlântica da Península Ibérica. Nós, europeus, vamos engolindo algumas perplexidades, inteiramente rubros e destilados, enquanto regressamos a casa pela A5, essa sauna gigante alcatroada que a Brisa desponibiliza a cada automobilista por apenas 1,25 euros. Faz calor e o mar acalma-se na seu infinito apelo a que nos banhemos nas suas tranquilas ondas, para que, depois, saciados dos elementos, possamos receber na pele a sagração do estio, espojados nas arenosas margens do oceano. Como é dia da semana e o trabalho aperta, podemos cumprimentar, através destas singelas palavras, o Professor César das Neves por mais um refrescante texto. A prosa é longa. Contudo, o tema permite que nos alonguemos, incitando o leitor a esperar a todo o momento ligação directa ao mercado que garante sustentabilidade à rede global e, ao que parece, mantém o PIB americano em resultados aceitáveis para uma economia de mercado respeitável. O que nos diz agora o catedrático de Economia da Universidade Católica? Que os princípios de educação sexual defendidos por «um grupo de iluminados» são «aqueles que até há pouco a sociedade chamava “porcalhões”». Aqui o Professor César das Neves ilumina-se (e ilumina-nos) com o facho da verdade, levanta a lanterna e caminha: «Aspectos consensuais há milénios são momentaneamente polémicos e vivemos enorme confusão de valores e critérios». Com efeito, depois de milénios a defender «pudor, castidade e matrimónio», pelo menos desde as primeiras poeiras cósmicas, para não dizer desde os testículos do Criador, a sociedade mergulhou num Banquete Romano, em que a única coisa que não é permitida é ficar quieto. Tem razão o Porfessor César das Neves quanto fala de consenso milenar. Vejamos rapidamente de que era feito esse consenso: nas sociedades antigas, China, Japão, Índia ou Roma, generalizou-se uma ars erotica, técnica em que o prazer – fosse como prática ou como experiência - não era entendido em relação a um absoluto, sequer a um critério de utilidade, mas conforme a intensidade, qualidade e repercussões (tanto no corpo como na alma). Desde a Idade Média, esse tempo glorioso em que o homem descobriu a caixa de ferramentas ainda hoje utilizada pelo Professor César das Neves para nos acender a grande fogueira do conhecimento, as sociedades ocidentais desenvolveram técnicas de confissão, com todos as repercussões no direito penal e na organização jurídica dos poderes. Ora, nós sabemos que desde o século XVI, e não somos catedráticos, embora sentemos o rabo nas mais diversas cadeiras, que o sexo era a matéria privilegiada da confissão. Porquê? Porque este ritual discursivo se desdobrou numa relação de poder em que a instância que requeria a confissão impunha, apreciava – numa palavra – determinava, toda a verdade do sexo. Em ordem a quê? Não, decerto, em ordem a um anjinho munido de uma arpa, recostado na doce curva de uma nuvem. Não, decerto, em ordem à estrela da manhã, Maria, nossa mãe. Peço a benevolência do caro leitor, uma vez que nos aproximamos do Verão e as palavras vigorosas do Professor César das Neves acendem nos nossos corações o ardor dos bons sentimentos. Continuando a nossa tranquila viagem pelo consenso secular das verdades eternas, o que nos diz a sociedade burguesa do século XVIII, aquela que, sem apelo nem agravo, pariu César das Neves e grande parte dos restantes economistas? Desde o século XVI, uma nova forma de governo vai impôr as suas regras: nas palavras de um conhecido filósofo (esses pós-modernos iluminados pela malícia do pecado) era agora preciso analisar a taxa de natalidade, a idade do casamento, os nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a frequência das relações sexuais, a maneira de as tornar fecundas ou estéreis, o efeito do celibato ou das interdições, a incidência das prática contraceptivas. Porquê tudo isto? Porque tal como afirmava Von Justi em 1769, e o reproduziam todos os manuais sobre polícia (governo) na Europa do século XVIII, «Os Estados não se povoam segundo a progressão natural da propagação, mas por virtude da sua indústria, das suas produções e das diversas instituições». A sociedade burguesa nada opôs ao sexo: apenas o circunscreveu, tanto numa economia do prazer como num regime ordenado de saberes científicos – os porcalhões de que fala o Professor. Porém, estes porcalhões são primos direitos dos economistas e pelos menos tão sabujos quanto eles. Não é necessário sublinhar que o peso das riquezas vai organizar-se em torno de um novo permitido e proibido, acentuando o laço entre parceiros de estatuto definido, em estreita relação com a economia: a circulação das riquezas está intimamente ligada ao corpo que produz e consome, corpo que deve ser regulado no novo espaço industrial. O catedrático levanta-se da sua cadeira forrada a púrpura e talha dourada e afirma: «A alcova substituiu a empresa e o direito à greve foi trocado pelo direito ao deboche». Aqui o Professor César das Neves dormita. Com efeito, a alcova substituiu a empresa, no mesmo momento (sécs XIX-XX) em que a absolutização dos mercados financeiros e o mundividência do prazer/consumo substituiram o direito do Estado Liberal e os valores antropológicos rurais/patriarcais em que se organizavam as sociedades do Ocidente. Meu caro Professor César das Neves: sol na eira e chuva no nabal talvez nem Jesus Cristo nos seus dias mais inspirados. Mas o Professor insiste e puxa do bolso da casaca um dardo verdadeiramente desconcertante, embebido na densidade dos factos da ciência económica e laminado com o bronze da subtileza cristã: «Os esquerdistas andam agora paradoxalmente aliados a marialvas e proxenetas». Quanto a marialvas, confesso que estive uma vez numa Igreja do centro de Lisboa a menos de trinta metros de João Braga, mas este nem vinha munido com sinais visíveis do seu sportinguismo, nem teve a oportunidade de entoar um faduncho, pelo que a acusação pertinente do Professor terá que considerar-se sem procedência. No que toca a proxeneta, devo confessar, novamente, o meu desconforto perante estes conceitos litúrgicos: não sei exactamente a raiz etimológica do termo mas aposto que rima como chupeta.
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