O problema da criminalidade suburbana tem ocupado as administrações dos Estados liberais durante os últimos 50 anos. A tradição cinematográfica americana – mas esta gente não passou a adolescência na cinemateca –, desde West Side Story até Há lodo no cais, desde há muito elabora sobre a questão: as cinturas urbanas das grandes cidades, onde se verificam quebras nas redes identitárias (passando por dificuldades tão singelas como as diversidades linguísticas), quebras na reprodução dos empregos, quebras na articulação entre espaços públicos e educação (quantas igrejas, quantos clubes desportivos, quantas escolas de música), produzem jovens – automaticamente excluidos das competências sociais básicas – que, revelando dificuldades de adaptação (insucesso escolar, abandono efectivo da família), optam pelo custo de oportunidade oferecido pelo crime. E aqui tocamos num ponto sensível: um dos mais sofisticados teóricos do liberalismo económico e da racionalidade neoclássica, Gary Becker, identificou alguns problemas básicos, Crime and Punishment, an economic approach (1968): de acordo com uma teoria liberal esclarecida e imune às contaminações inerentes à redacção do Jornal Expresso, bem como aos editoriais inebriantes de José Manuel Fernandes, os indivíduos ponderam os custos e benefícios esperados das suas acções, decidindo a sua conduta, contrária ou conforme à lei, de acordo com uma comparação entre o resultado da sua hipotética acção criminosa e o resultado da sua integração no mercado legal, de onde resulta uma curva de probabilidade criminal a partir da apreensão dos custos da condenação, dos custos de cometer um acto ilegal e dos custos de integrar a normalidade cívica. Decidir cometer um crime – de acordo com a teoria do mercado – resulta da maximização da utilidade esperada, que é medida pelo indivíduo através dos cálculos sobre os futuros ganhos da acção criminosa, o valor da punição, e o custo de oportunidade de cometer um crime mediante o salário alternativo no mercado de trabalho. O rendimento social de inserção foi implementado a partir desta análise: aumentar os custos de oportunidade dos actos ilegais. Porém, antes que o leitor pense em assaltar a vivenda do outro lado da rua, devo alertá-lo para um texto seminal (agora sim) de Henrique Raposo, publicado no Expresso. Raposo, talvez o maior ensaista político da actualidade, senão mesmo o maior bebedor de caipirinhas liberais, identificou, com zelo patriótico e presciência abnegada, o coração do problema.
Aquilo que está em causa na Bela Vista é a eficácia das políticas sociais, sobretudo do Rendimento Social de Inserção (RSI). Nas Belas Vistas e nas Quintas das Fontes, a solução não passa por mais polícia, mas sim por menos subsídios.
(note-se o uso plural que lança, com olho de lince, a generalização, essa mãe coragem da ciência política)
As pessoas acomodam-se ao RSI. Nestes bairros, os filhos comportam-se como vândalos, porque os pais são tratados como crianças pelo Estado. Se calhar, já vai sendo tempo de tratar estas pessoas como adultos. Estas pessoas têm de ser tratadas como cidadãos, e não como cidadãos-crianças. Enquanto tiverem uma mesada assegurada (RSI), estas pessoas precisarão sempre de uma babysitter permanente (polícia em cada rua). Por outras palavras, é preciso acabar com a lógica do 'coitadinho'. O percurso dos 'coitadinhos' que vandalizam as Belas Vistas e as Quintas das Fontes é sempre o mesmo. Na escola, o 'coitadinho' bate na professora, mas como é 'coitadinho' nada lhe acontece. Na rua, o 'coitadinho' rouba uma criança 'não-coitadinha', mas como é um 'coitadinho-menor' fica impune. Quando chega a casa, o 'coitadinho-filho' repara que o 'coitadinho-pai' não paga a renda, a luz e a água. Ainda por cima, o 'coitadinho-filho' vê que este comportamento compensa, dado que o 'coitadinho-pai' continua a receber o cheque mensal do RSI. Ora, se as diversas faces do Estado (escola, polícia, município, segurança social, etc.), tratam estas pessoas como crianças durante o dia, então elas vão agir como crianças durante a noite: daí a destruição dos carros dos vizinhos, daí a queima de caixotes do lixo, daí os ataques a bombeiros e polícias - os desportos noctívagos dos cidadãos-crianças.
O Estado trata os pais como crianças. Nem mais. O que faz o português médio com as suas crianças? Atira-lhes, de acordo com um critério de alguma sistematicidade, com o seguinte repto: ou te portas bem - trabalhando nas obra da nova ponte, no serviço de caixa do doutorado honoris causa, ou na linha de montagem da auto-europa, sábados incluído - ou retiro-te o subsídio em gomas. O modelo de actuação infantil, protegido pelo Estado e denunciado por Henrique Raposo, toca no cerne da questão (toca de tal maneira que não podemos deixar de sentir um certo desconforto ao nível do baixo ventre). Se não, vejamos: normalmente, as crianças vestem-se, apressadamente, durante a noite e vão destruir os carros das crianças vizinhas, queimar caixotes de lixo dos seus amigos, atacar bombeiros e polícias lançado as suas xuxas embebidas em alcool etílico sonegado do armário da casa de banho dos país. Acresce a esta identificação da adolescência eterna das cinturas suburbanas, uma utilização prodigiosa do conceito «coitadinho». Esta é uma analítica que colhe ainda mais. Colhe porque toca no problema central da vida portuguesa com uma tal suavidade que nem José Gil, calçado com luvas de seda, atingiria tal efeito de docilidade interpretativa. Com origem na palavra coito, o coitado é aquele que sofre passivamente o coito várias vezes. O coitadinho, além disso, sofre também pelo facto da sua posição ser ainda mais inferior pela diminuição da sua dignidade. Se o Estado não o aperta bem contra a parede - no mais claro credo liberal - continuará a ser um coitadinho infantil. Contudo, perdi-me. Raposo, um liberal melancólico, encontra na origem de todos os problemas o Estado, esse monstro ignóbil. E tudo se clarifica, pela mão clarividente de Henrique Raposo. Não queremos menos Estado: queremos um Estado que aperte com eles. Com efeito, Raposo é imparável na sua capacidade de desmontar complexos problemas sociais. Mas há mais! Raposo prossegue sem baixar o nível de rigor e perícia intelectual:
A causa deste vandalismo não é a pobreza per se. (repare na utilização da expressão latina a recordar, e bem, o leitor de que quem lhe fala não é um cidadão-criança mas um erudito ancião) O 'pobre' não é um vândalo em potência. A causa desta barbárie suburbana é a falta de uma cultura de responsabilidade.
Ora aqui está.
A identidade destes jovens suportados pelo RSI constrói-se em redor do desprezo pelo trabalho.
E mais uma vez o liberalismo português, larga as amarras pesadas dos manuais da ciência económica, os estudos e as estatísticas, e larga pelo céu do virtude, desembocando num cântico às virtudes do trabalho ao som de botas de cano marchando em grandes paradas militares.
Aquele que trabalha das 9 às 5 só pode ser um 'otário', aos olhos destes gazeteiros. Aliás, "trabalho é p'ra totós" é o slogan que sustenta a identidade dos gangues suburbanos.
Slogan que o elogio da derrota, confessadamente, subscreve por inteiro. Trabalho das nove às cinco? Ainda se fosse das 10 às 4, vá lá. Ou pelo menos das nove às cinco mas com intervalo para almoço executivo no Gambrinos, seguido de uma viagem à República Dominicana (ou à Turquia) para firmar um negócio manhoso participado por duas empresas de componentes para calculadoras e uma de distribuição de apoios para rolos de papel higiénico.
Os 'piores' vêm sempre de famílias encostadas ao subsídio. Lamento, mas é assim. Não me odeiem por eu dizer isto. Odeiem a realidade, porque eu estou apenas a apontar para um facto. Não acreditam? Então experimentem fazer antropologia suburbana durante quinze dias.
Por nós, preferimos fazer antropologia urbana em redacções de jornais de referência e gabinetes de investigação na área da ciência política: são pacíficos, adultos, responsáveis, não consomem verbas ao Estado, fazem bem ao espírito e tornam esta maçadora e perigosa vida numa tranquila viagem (sem custos), pelas maravilhas raras do exotismo indígena português.
Aquilo que está em causa na Bela Vista é a eficácia das políticas sociais, sobretudo do Rendimento Social de Inserção (RSI). Nas Belas Vistas e nas Quintas das Fontes, a solução não passa por mais polícia, mas sim por menos subsídios.
(note-se o uso plural que lança, com olho de lince, a generalização, essa mãe coragem da ciência política)
As pessoas acomodam-se ao RSI. Nestes bairros, os filhos comportam-se como vândalos, porque os pais são tratados como crianças pelo Estado. Se calhar, já vai sendo tempo de tratar estas pessoas como adultos. Estas pessoas têm de ser tratadas como cidadãos, e não como cidadãos-crianças. Enquanto tiverem uma mesada assegurada (RSI), estas pessoas precisarão sempre de uma babysitter permanente (polícia em cada rua). Por outras palavras, é preciso acabar com a lógica do 'coitadinho'. O percurso dos 'coitadinhos' que vandalizam as Belas Vistas e as Quintas das Fontes é sempre o mesmo. Na escola, o 'coitadinho' bate na professora, mas como é 'coitadinho' nada lhe acontece. Na rua, o 'coitadinho' rouba uma criança 'não-coitadinha', mas como é um 'coitadinho-menor' fica impune. Quando chega a casa, o 'coitadinho-filho' repara que o 'coitadinho-pai' não paga a renda, a luz e a água. Ainda por cima, o 'coitadinho-filho' vê que este comportamento compensa, dado que o 'coitadinho-pai' continua a receber o cheque mensal do RSI. Ora, se as diversas faces do Estado (escola, polícia, município, segurança social, etc.), tratam estas pessoas como crianças durante o dia, então elas vão agir como crianças durante a noite: daí a destruição dos carros dos vizinhos, daí a queima de caixotes do lixo, daí os ataques a bombeiros e polícias - os desportos noctívagos dos cidadãos-crianças.
O Estado trata os pais como crianças. Nem mais. O que faz o português médio com as suas crianças? Atira-lhes, de acordo com um critério de alguma sistematicidade, com o seguinte repto: ou te portas bem - trabalhando nas obra da nova ponte, no serviço de caixa do doutorado honoris causa, ou na linha de montagem da auto-europa, sábados incluído - ou retiro-te o subsídio em gomas. O modelo de actuação infantil, protegido pelo Estado e denunciado por Henrique Raposo, toca no cerne da questão (toca de tal maneira que não podemos deixar de sentir um certo desconforto ao nível do baixo ventre). Se não, vejamos: normalmente, as crianças vestem-se, apressadamente, durante a noite e vão destruir os carros das crianças vizinhas, queimar caixotes de lixo dos seus amigos, atacar bombeiros e polícias lançado as suas xuxas embebidas em alcool etílico sonegado do armário da casa de banho dos país. Acresce a esta identificação da adolescência eterna das cinturas suburbanas, uma utilização prodigiosa do conceito «coitadinho». Esta é uma analítica que colhe ainda mais. Colhe porque toca no problema central da vida portuguesa com uma tal suavidade que nem José Gil, calçado com luvas de seda, atingiria tal efeito de docilidade interpretativa. Com origem na palavra coito, o coitado é aquele que sofre passivamente o coito várias vezes. O coitadinho, além disso, sofre também pelo facto da sua posição ser ainda mais inferior pela diminuição da sua dignidade. Se o Estado não o aperta bem contra a parede - no mais claro credo liberal - continuará a ser um coitadinho infantil. Contudo, perdi-me. Raposo, um liberal melancólico, encontra na origem de todos os problemas o Estado, esse monstro ignóbil. E tudo se clarifica, pela mão clarividente de Henrique Raposo. Não queremos menos Estado: queremos um Estado que aperte com eles. Com efeito, Raposo é imparável na sua capacidade de desmontar complexos problemas sociais. Mas há mais! Raposo prossegue sem baixar o nível de rigor e perícia intelectual:
A causa deste vandalismo não é a pobreza per se. (repare na utilização da expressão latina a recordar, e bem, o leitor de que quem lhe fala não é um cidadão-criança mas um erudito ancião) O 'pobre' não é um vândalo em potência. A causa desta barbárie suburbana é a falta de uma cultura de responsabilidade.
Ora aqui está.
A identidade destes jovens suportados pelo RSI constrói-se em redor do desprezo pelo trabalho.
E mais uma vez o liberalismo português, larga as amarras pesadas dos manuais da ciência económica, os estudos e as estatísticas, e larga pelo céu do virtude, desembocando num cântico às virtudes do trabalho ao som de botas de cano marchando em grandes paradas militares.
Aquele que trabalha das 9 às 5 só pode ser um 'otário', aos olhos destes gazeteiros. Aliás, "trabalho é p'ra totós" é o slogan que sustenta a identidade dos gangues suburbanos.
Slogan que o elogio da derrota, confessadamente, subscreve por inteiro. Trabalho das nove às cinco? Ainda se fosse das 10 às 4, vá lá. Ou pelo menos das nove às cinco mas com intervalo para almoço executivo no Gambrinos, seguido de uma viagem à República Dominicana (ou à Turquia) para firmar um negócio manhoso participado por duas empresas de componentes para calculadoras e uma de distribuição de apoios para rolos de papel higiénico.
Os 'piores' vêm sempre de famílias encostadas ao subsídio. Lamento, mas é assim. Não me odeiem por eu dizer isto. Odeiem a realidade, porque eu estou apenas a apontar para um facto. Não acreditam? Então experimentem fazer antropologia suburbana durante quinze dias.
Por nós, preferimos fazer antropologia urbana em redacções de jornais de referência e gabinetes de investigação na área da ciência política: são pacíficos, adultos, responsáveis, não consomem verbas ao Estado, fazem bem ao espírito e tornam esta maçadora e perigosa vida numa tranquila viagem (sem custos), pelas maravilhas raras do exotismo indígena português.
1 comentário:
Desmontagem bem urdida e eficaz. Gostei.
Enviar um comentário