O mundo é um lugar cheio de imperfeições. Desde as complexas dificuldades do direito internacional até às dificuldade étnico-culturais de cada nação. Com efeito, Portugal é uma terra maldita. Em todo o caso, se os jogos olímpicos fossem organizados em torno de disciplinas técnicas como “esperteza”, “basófia”, “charlatanice intelectual”, posso desde já avançar que seria fácil apresentar alguns sérios candidatos aos diferentes pódios, e tudo isto recorrendo apenas aos ilustres colunistas dos jornais diários.
Animado por este espírito olímpico vou fazer evoluir a minha prosa numa muito pouco apreciada disciplina técnica: o comentário do comentário.
Um dos mais estimados colunistas do Público, grande empresário da hotelaria rigorosa e excelente, também especialista em administração da coisa pública, José Miguel Júdice, tem uma visão sui generis do fenómeno olímpico. Com efeito, o seu habitual desalinhamento crítico resulta numa ventoinha de acutilantes observações socio-psicológicas em torno das mais variadas temáticas. Neste particular domínio das Olimpíadas, através do seu texto do Público de sexta-feira, 22 de Agosto, ficamos a saber que Portugal, uma outra vez, revela a sua verdadeira face. Além do mais, o leitor pode encontrar um erudito conjunto de conclusões em torno dos Jogos Olímpicos, entendidos sobretudo como prova irrefutável do perfil nacional de cada povo (leia-se aqui aglomerado de pessoas com caracteres semelhantes). Além da crítica, justa e rigorosa, esclarecida e especializada, ao desempenho dos atletas, podem ler-se úteis sentenças de utilização diária. Já sabiamos, por meio de outros belos textos, que nos vetustos corações dos homens habituados ao risco e ao desafio, cheios de indivídualismo, o jogo é o grande segredo da vida. Aprendemos, contudo, uma outra coisa. De tanto individualizar, acabamos por ficar a saber que existe um conjunto de «características que nos definem que resultam do processo de aculturação em que nos forjamos em cada geração e comunicamos às seguintes». Que é a análise do modo de produção e da reprodução das relações sociais em Marx comparada com esta análise plena de individualismo e de liberdade de aprender, de ensinar, de comer, de correr, de saltar 17, 64?
És grande ó Júdice. Se Portugal fosse um país onde se cultivasse a excelência já estarias a ministrar cadeiras de «política à portuguesa» na Universidade Católica ao lado do douto José António Saraiva.
Segundo Júdice, «O râguebi não foi a Pequim» e, por isso, os atletas portugueses presentes na capital da chinezice (onde também deve existir um elemento a conectar as acções dos milhões de chineses) revelaram assim «a nossa verdadeira face». A saber: «o esforço e o sacrifício não são valorizados, o trabalho e a formação não são enaltecidos, achamos que temos direitos e não deveres, o sucesso é mal visto e só cria problemas e invejas, a exigência e o rigor não são praticados, somos pouco ambiciosos, se acharmos que não podemos ganhar, preferimos desistir, somos incapazes de autocrítica e achamos por isso que a culpa dos nossos fracassos é sempre dos outros (…)».
De acordo com José Miguel Júdice, tudo isto ao contrário da selecção de râguebi no mundial que teria sido um exemplo de exigência, rigor, sucesso. Mas qual selecção de râguebi?
Esta?
Escócia, 56 - Portugal, 10.
Nova Zelândia, 108 - Portugal, 13.
Itália, 31 - Portugal, 5.
Roménia, 14 - Portugal, 10.
De facto, escapa-me aqui qualquer coisa. Suspeito, no entanto, que o raciocínio, neste momento inacessível ao meu pobre e preguiçoso espírito, incluirá concerteza “Rugby”, “Universidade Católica”, “desportos de gajos que se estão sempre a agarrar uns aos outros”, “ignorâncias várias que todos temos”, “merdices liberais”, “almoços em Cascais” e outras coisas mais.
O seu a seu dono! Júdice mostra-se um verdadeiro velocista da análise socio-despotiva: «Os nossos atletas foram assim com pouca ambição, no fundo com muito receio de falhar, sem o espírito de sacrifício necessário, pouco dispostos a continuar a trabalhar, achando que o sucesso não compensa, sempre insatisfeitos com o que lhes foi dado porque achariam seguramente que muito mais lhes era devido.» Estará a falar, por exemplo, de Naíde Gomes? A atleta chegada de São Tomé e Príncipe, com todo o apoio que isso significa (desde os bem equipados bairros sociais, até aos vários rendimentos de que essa gente beneficia, sem outra coisa fazer senão dedicar-se a viver à sombra do Estado Social, seus malandros que nem medalhas de ouro ganham) criada em Fernão Ferro (uma terra de oportunidades e de condições de treino, ele é pistas de tartâ, ele é banhos quentes, ele é massagens tailandesas)? Falará Júdice desta antiga estudante na Escola do Feijó (esse antro de maus hábitos, território favorável à preguiça que deve ter inoculado o vírus da mediocridade em Naíde)?
Atletas de Portugal corem de vergonha! Honra e glória à República. Osportões sagrados do sucesso apenas se abrem à voz dos vencedores. Forjai novas elites para trilhar os rumos da vitória, capazes de se libertarem da «lei da morte de que falava Camões». Sim, esta frase foi pronunciada pelo oráculo. É estúpida, mas não interessa. (Mas Camões falava da lei da morte?) Não interessa. É Júdice, o tribuno, quem vos fala.
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