O caro leitor terá decerto reparado que sou um daqueles tolos que ainda perde tempo em ouvir economistas. Ontem, no programa Prós e Contras, Medina Carreira desfilou mais uma vez, em saltos mortais e piruetas, a sua teoria do apocalipse liberal-ó-capitalista-temos-que-trabalhar-mais-isto-é-a-verdade. Vários meses depois de uma entrevista a Mário Crespo, sacou da sua memória vitalíssima, a mesma história da rapariga-caixa-de-supermercado, «de umbigo de fora» (Medina Carreira dixit) contando as cervejas da grade, uma a uma, por desconhecer as regras da multiplicação. Com efeito, as perturbações de um umbigo adolescente podem embaciar um pouco o entendimento, facto a descontar na contabilidade do disparate, onde, por sinal, Medina Carreira é um dos mais avultados devedores. E porquê? Como temos o dever da verdade, há que recordar o principal problema de Portugal: aqui no Elogio da Derrota, temos sido verdadeiros em diversos momentos. Temos mesmo servido a verdade em bandeja de prata. O problema é que a verdade vem cortada às fatias e na hora de juntar batatas e distribuir, uns ficam com o lombo da verdade, outros com as costeletas da verdades, outros com a banha da verdade e outros, ainda, com o osso da verdade. No entanto, os «marretas» continuam a desfilar ininterruptamente, servindo verdade assada, verdade cozida, verdade salteada com molho aux champignon, verdade gratinada. A título de exemplo, Medina Carreira e Ricardo Costa fazem um belo gaspacho de verdade com fatias de bacon em vinho de Palmela.
O problema de Portugal é justamente a escassez de figuras como Medina Carreira ou o inefável Presidente da República. Contudo, podiamos juntar o engenheiro Azevedo, o inefável Carrapatoso, ou outros gestores de nomeada e mormente. Mas como pode ser - perguntará o escandalizado leitor - não existir cada um destes bonecos em cada quarto de brincar aos portugueses e aos seus compromissos?
Uma pequena história. John Maynard Keynes, nascido em 1883, ano da morte de Marx, talvez o mais brilhante economista do século XX, não só teórico e académico, mas político e gestor de primeira água, assumiu por diversas vezes posições de destaque na economia britânica (presidente do Conselho de Companhias de Seguros, conferencista em Cambridge e ainda, ó blasfémia das blasfémias, Funcionário Público na Secretaria da Índia). Entre vários textos decisivos da análise económica, Keynes começou por amar os clássicos, história e inglês, tornando-se um perito em poesia latina medieval.
Caro leitor... poesia latina medieval! Eu sei que o mundo não é mesmo, a globalização, valor acrescentado, a apoteótica santidade do mercado, os produtos diferenciados, e tal...Em todo o caso, foi durante a campanha para a presidência da República que um apoiante de Aníbal Cavaco Silva proferiu a mais boçal afirmação da história política portuguesa: «Não se paga salários aos funcionários públicos e aos políticos, nem pensões aos reformados com a hipotética cultura dos que dizem conhecer os Autos de Gil Vicente, as redondilhas de Camões ou os sonetos de Antero». A plateia explodiu num aplauso apoteótico, o candidato Aníbal ergueu a custo o lábio superior para esboçar um sorriso, as luzes tremelicaram arrepiadas com a vibração da sentença profética, a nação acordou para trilhar os caminhos verdadeiros do senhor. O autor do discurso chamava-se Medina Carreira e na minha empresa não o empregaria nem como caixa de super-mercado, mesmo que viesse com o umbigo de fora, uma vez que as suas qualificações são tão elevadas para a função que estragariam o tecto da minha grande superfície. Mas eu sei - é claro - a minha hipotética empresa de retalho desabaria em falência na primeira semana de vida. Resta-nos por isso recorrer à sapiência de Medina Carreira e Aníbal Cavaco Silva, homens que nada relaciona com a destruição do governo democrático em Portugal nos últimos vinte anos.
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