quarta-feira, 19 de março de 2008

há é gente que acerta gente que erra

Se fosses pássaro baterias as asas para destruir a armadilha
Se fosses insecto deixarias círculos apenas ao redor da luz
Se fosses abelha farias zumbir a revolta
Mas és voo pela sombra
Se fosses formiga carregarias a ordem, armazenarias a fadiga
Se fosses flor polinizarias a terra
Serias coroa incorruptível
Se fosses flor através das estações

Daniel Faria


Eduardo Prado Coelho, não muitos dias antes de morrer, confessou numa entrevista o arrependimento de alguns gestos. Como quem tinha o gosto de pensar, reconhecia o erro, demasiadas vezes comum em todos. Como quem tinha o gosto de pensar, havia rigor naquelas palavras impressas em jornal, vagamente trazidas até mim pelo transporte do tempo. Devo ter lido a entrevista numa dessas pastelarias da periferia, onde há reformados em comentários inflamados sobre a última medida governamental, mulheres que poisam a carteira a compor os filhos na alcova, homens que bebem cerveja enquanto rodopiam a carica no balcão. Devo ter lido a entrevista enquanto a chuva prometia maldições bíblicas pelas ruas do Cacém e da Amadora.
O entrevistador terá perguntado ao famoso crítico se alguma vez se tinha enganado sobre o talento de um jovem escritor. Eduardo Prado Coelho, como um dos poucos que corajosamente confessa ter do homem a estatura - não a premonição dos deuses - dizia arrepender-se de ter ignorado um jovem poeta, na época desconhecido. Confessava - e eu preso no nome que soaria no meu cérebro, rodeado de vozes numa pastelaria da periferia – arrepender-se de não ter percebido logo que aquele rapaz se chamaria Daniel Faria e era um poeta definitivo. Comoveu-me a sinceridade de Eduardo Prado Coelho. Não me lembro qual o jornal onde li a entrevista, não me lembro da pastelaria, da rua, da avenida, do dia.
Mas juro que vejo um rapaz, chamado Daniel Faria, cruzar a rua, de olhar cabisbaixo, um molho de folhas, talvez debaixo do braço, talvez no bolso, um molho de folhas julgadas imprestáveis, o olhar vagamente perdido, um molho de palavras no bolso, e o olhar, um molho de luz e sombra no coração da noite.

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