Estamos todos melancólicos com a morte do grande crítico
literário e guardião do bom gosto, Harold Bloom. A Civilização Ocidental parece
irreversivelmente condenada ao inferno, entre a subida das temperaturas e o aumento do interesse pelo Tofu. Recusar o consumo da alheira de Mirandela parece quase
tão imperativo como reconhecer a genialidade de Titus Andronicus.
Aproveitando a efeméride, assinalamos a morte de Harold
Bloom, o crítico que heroicamente mais tempo resistiu a António Lobo Antunes,
parecendo (desta feita) restar apenas, algures numa cave em Massamá, um
professor de carpintaria do ensino profissional, desde sempre enfastiado pelos
livros do aclamado Antunes, hábil cultor na repetição de um tema já
imortalizado por Molly Bloom, a saber: ai, ui, (pausa) ui, ai (pausa) ui (dupla
pausa) ai.
O autor Nuno Camarneiro, também ele vencedor algures durante
a atribulada História da Civilização Ocidental, de um prémio Leya, e pessoa
preocupada com a degradação da leitura, lembrou na sua página do Facebook
(oremos):
«Morreu o Harold Bloom, um dos maiores e mais influentes
críticos literários de sempre. Troquei alguns emails com ele e espantou-me a
disponibilidade, a inteligência e a erudição (lia em 7 ou 8 línguas, entre elas
o português, e tinha um enorme conhecimento da literatura em língua
portuguesa).»
Calculo que Camarneiro após examinar Quintiliano e Valla,
Pope e Boileau, Arnold e Pater, decretou com severidade: ora aí está um dos
melhores críticos literários de sempre; vou trocar uns mails com ele.
Felizmente, também nós podemos agora morrer em paz, após sermos notificados da
existência desse insólito evento: Bloom tinha um enorme conhecimento da
literatura em língua portuguesa (coitado) que expressou generosamente nos mails
trocados com Nuno Camarneiro. Vale a pena toda uma vida de incompreensão dos novos
movimentos literários, uma vida atravessada pelos sistemáticos ataques da
cultura popular e dos estudos pós-modernos, uma vida assombrada pelo ódio de
esquálidas feministas e marxistas perigosos, uma vida toda consumida pelo
exigente ensino nas melhores Universidades norte-americanas, uma vida de luta
solitária pelos méritos da sabedoria bíblica e a divulgação das crípticas
intemporalidades do Bardo; tudo isso vale a pena quando sabemos estar-nos
reservada, no fim dessa mesma vida, uma troca de mails com o Nuno Camarneiro.
Eduardo Pitta assinalou o
lado político-ativista de Harold Bloom:
«Politicamente incorrecto, combateu a crítica marxista, o
afrocentrismo e o feminismo, ou seja, aquilo que designava por «escola do
ressentimento». Admirava profundamente Emily Dickinson, Jane Austen, George
Eliot, Virginia Woolf, Toni Morrison, Maya Angelou e Amy Tan.»
Depois desta impressionante lista de génios, ficamos a saber
que o politicamente incorrecto Harold Blomm «detestava a saga Harry Potter». O
que é absolutamente compreensível. Também o grande Frank Raymond Leavis demorou 22 anos a compreender o génio de Dickens, até que ao fim ajoelhou, publicando um livro intitulado Dickens the novelist (1970). Calculo que o problema "Harry Potter" represente um caso de similar embaraço para as mentes mais académicas. A história conta-se num parágrafo, de quatro ou cinco frases.
Uma inglesa loira e periférica, sem ponta de singularidade,
criada na fronteira do País de Gales, recusada por Oxford nos exames de admissão, depois reformatada pelo vernáculo de uma cidade suja de um país pobre e
analfabeto, após engordar com as delícias do pastel de Chaves e da Francezinha,
sonha forjar uma mitologia infantil com o poder hipnótico de
Dickens e as cornucópias morais de Tolkien, e sem para isso recorrer à
aprendizagem das línguas antigas, ao enxame de citações, às vénias doutorais,
numa palavra, ao ranço que a Literatura vai acumulando pelo seu tortuoso
caminho. A rapariga, entretanto divorciada, deprimida e desempregada, põe-se a
escrevinhar pelos cantos de cafés obscuros, pisando insegura as mesmas ruelas
que receberam generosas os pés de Thomas de Quincey e Adam Smith, e num toque
de magia pirosa (com estrelinhas de ouro e unicórnios voadores) algures sonolenta,
cansada, vencida, prestes a ser lançada para a pobreza, o ressentimento e o
mais que certo definhamento moral e físico, algures num comboio entre
Manchester e Londres - nessa linha de fuligem e gritos surdos onde reina o
fantasma de Oliver Twist -, eis que um rapazinho imberbe e insolente, aparece no
meio do entulho sofrido da sua extenuada cabeça. Naquele momento, ao contrário do que nos
contam muitos dos livros (que têm passado, nas últimas duas décadas por Literatura), a mente da rapariga loira não é apenas uma
espiral caótica de emoções difusas e imagens incontroláveis, mas uma máquina de
produzir sentido. De modo que a loira burra, pilotando a endiabrada máquina da mente, se dedica a ordenar, numa narrativa
transfigurada, todos os pedaços de prazer e horror de uma vida destinada (ó mistério dos mistérios) a produzir uma mitologia pessoal: no fundo, o destino absurdo e horrível de todos os
génios. Obstinada, imperial, terrível, enlouquecida pelo desespero, essa rapariga mergulha no
reino sombrio e orgulhoso da sua imaginação, atingindo as terras proibidas onde, apenas aos escolhidos, são
revelados os íntimos segredos do Cânone e da Universalidade. Tudo isto,
envergonhando, pelo caminho, os pedantes doutores de Oxford, Harvard e Yale.
Como aceitar de bom grado esta narrativa barata? Sinceramente, não sei.
Para lá dos excessos sobre Shakespeare e a invenção do humano, Hardold Bloom soube reconhecer um problema, digamos, de sociologia literária, no seu aclamado A Angústia da Influência (1973), o que não é pouca coisa. Notou que o «poder que faz de um homem um poeta é demónico» esquecendo-se porém de notar, da mesma forma, que não será menos demónico o poder que faz poeta uma mulher.
Para lá dos excessos sobre Shakespeare e a invenção do humano, Hardold Bloom soube reconhecer um problema, digamos, de sociologia literária, no seu aclamado A Angústia da Influência (1973), o que não é pouca coisa. Notou que o «poder que faz de um homem um poeta é demónico» esquecendo-se porém de notar, da mesma forma, que não será menos demónico o poder que faz poeta uma mulher.
Deus nos conserve lúcidos para venerar, ajoelhando, o Cânone
com a mesma força com que nos endireita a espinha prontos a cuspir no Cânone.
Quanto a Harold Bloom, paz à sua alma, agora que se prepara para mergulhar no abismo do esquecimento.
Como já aqui foi referido por diversas vezes (e nunca é demais lembrar) a Literatura é isto mesmo.