Um simpático leitor veio aqui ameaçar-nos com um blogue onde, alegadamente, se escrevem textos longos e impressionantes, e onde, de caminho, se revela um impressionante conhecimento da literatura. Apesar de sufocado por uma tenebrosa falta de tempo, fiz minhas as palavras de um conhecido poeta no meio de uma tempestade de neve, e fui ver: o blogue intitula-se
Homem-de-Livro e é da autoria de Luís Miguel Rosa. O autor escreve poucos textos mas recorrendo à forma longa. Deixando de lado os textos em inglês, li apenas com atenção o ensaio
«A Cada Esquecido o seu Adido» e o maior elogio que se pode fazer é que foi capaz de colocar em progresso as pesadas e gastas correias da minha mecânica mental.
Não é
comum dizermos por aqui coisas positivas, sobretudo quando se trata de jovens autores, mas eis chegado o dia em que somos
forçados a aplaudir um (pelo menos para mim) desconhecido. Apesar de o autor, Luís Miguel, se exceder na extensão da argumentação, nem sempre utilizando a famosa e sempre tão necessária navalha de Occam, e mesmo recorrendo a expressões arcádicas como «acúmen sentimental» ou «irmanizam» e deixando de lado alguma falta de brilhantismo no estilo (o que funciona como vantagem no alcance democrático da sua reflexão) só podemos agradecer
a este promissor autor o seu trabalho. Pensamos sobretudo na compilação de dados que certificam muitas das nossas ideias, por vezes aqui por nós apenas afloradas, mas sem a devida fundamentação, em virtude dessa saborosa combinação (que sempre nos assiste) entre a fatal preguiça e a necessidade de ganhar a vida com outras coisas mais apreciadas pelo vulgo.
Como não podia deixar de ser, passaremos em revista algumas pequenas irritações, para de caminho podermos soltar alguns elogios a Luís Miguel Rosa, com estoiro e espumante, na alegria de ver em letra de forma
algumas singelas verdades que, por razões históricas e económicas, é muito raro
vermos defendidas no nosso contexto literário.
Primeiro problema: pela boca morre o peixe. O Luís Miguel parte de considerações sociológicas muito abrangentes mas escolhe como representação desse retrato apenas duas figuras, sobre as quais se demora, Baptista Bastos e sobretudo Joana Emídio Marques. Na verdade, além da insólita e deselegante tareia aplicada a Baptista Bastos (um homem falecido, segundo julgo saber) Luís Miguel Rosa aponta a Joana Emídio Marques - uma crítica literária e jornalista com recente protagonismo nas páginas do Observador - com especial, ainda que justa, severidade. Reconheço que o caso possa ser paradigmático, mas seria muito mais eloquente se o Luís Miguel apontasse vários exemplos, incluindo os vários académicos, muitos editores e infinitos presidentes de júris de prémios literários, mas palpita-me que Luís Miguel Rosa sabe bem por onde passa a linha vermelha da sobrevivência e comete aqui um erro similar, em termos de crítica, ao que pretende denunciar com a sua curiosa e profunda, mas às vezes confusa, análise do problema crítico português: a energia despendida e desperdiçada a fabricar elegias a «escritores esquecidos» é apenas uma via para impiedosamente se poder insultar os novos e contemporâneos.
«Toda a boa crítica é uma celebração, um acto de louvor, se
não de amor. Porque não há valores absolutos na estética, o crítico deve dar
menos importância à explicação do que ao encantamento. (...) O sermão, a invectiva, o vitupério,
a verrina, a diatribe, eis os géneros favoritos dos pretensos guardiões da
nossa memória colectiva.»
e mais adiante:
«Volvido um século, esse tom sobrevive em catastrofistas como
Clara Ferreira Alves, Ana Cristina Leonardo, António Guerreiro e os demais que
se têm em conta como orientadores da cultura e formadores do gosto. Nas mãos
deles, os esquecidos são um pretexto para destilarem ódio de forma socialmente
aceite (“Ela preocupa-se!”), pois acabam antes por estadear a sua superioridade
sobre os outros e expressar de forma segura o habitual desdém pelos portugueses
que é o apanágio de todo o intelectual que odeia ter nascido nesta pasmaceira
quando podia ter nascido em Paris, Londres, Nova Iorque.»
Caro Luís Miguel, mas não será esse longo texto um magnífico exemplo daquilo que, precisamente, identifica como um problema da crítica nacional? O Luís Miguel - muitas vezes nesse texto, sem grande demonstração ou consistência lógica - acusa a crítica de não ser demonstrativa (o que é correcto) e apesar de aduzir toneladas de informação sociológica (assunto a que voltarei para o elogiar) censura o tom verrinoso e acusatório dos críticos, para logo acusar, verrinosamente, uma série de críticos de serem verrinosos e acusatórios. Isto significa que o problema talvez não esteja na dimensão acusatória ou na verrina, ou nos problemas de sociologia da literatura, que o Luís Miguel Rosa muito bem critica (desmontando falsas ideias sobre escritores alegadamente marginalizados ou esquecidos) mas sim na dificuldade em dizer qualquer coisa de lógico, fundamentado e universal no que respeita ao valor estético de um texto.
É sempre cómico contemplar o momento em que críticos inteligentes, com formação superior em Literatura e gosto apurado, constatam esta singela realidade (o valor em Literatura é um pântano fumegante), mas horrorizados pelo desperdício de tempo a que, nesse caso, se entregaram, se recusam a daí extrair todas as dolorosas consequências sobre a irrelevância da informação, por eles acumulada ao longo de anos, sobre «literatura de qualidade». Se tudo é manifestação de amor, estaremos mais perto de um Toy do que de um I. A. Richards
. Se o Luís Miguel considera despropositado os críticos censurarem Z por não ter lido A (pois a experiência literária é subjectiva) das duas uma: ou o Luís Miguel demonstra que existe uma crítica não subjectiva ou terá de aplicar à crítica a mesma receita que aplica à literatura: o amor honesto é o elementar critério da verdade, pois tudo é subjectivo. Como experiência subjectiva, gosto muito do estilo acusatório e verrinoso e faço neste caso o diagnóstico oposto: temos carência e não excesso desse medicamento genérico.
Aliás, o próprio Luís Miguel conclui na parte final do texto isto mesmo, contradizendo, de alguma maneira, o que escreveu na primeira parte do texto (provavelmente, partes escritas até em dias diferentes e já não tendo o autor inteiramente presente as primeiras afirmações).
«Não há escritores intocáveis, muito menos os actuais; nem
estou a proscrever resenhas negativas aos críticos de jornal. Penso aliás que
foi a falta de uma tradição de resenhas negativas feitas honestamente que
exacerbou este problema: o medo de emitir uma opinião, o medo de julgar, o medo
de avaliar, o medo de ofender, levou à falta de um cânone sólido e aceite de
forma generalizada. Penso ainda que foi a falta de rigor na avaliação dos
escritores dos últimos vinte anos, os quais foram deificados depressa e sem
resistência, que leva muitos adidos a iras tremendas.»
Aqui a confusão fica patente: da impotência da subjectividade literária - e da inutilidade de convencer os outros dos nossos gostos - passamos a uma economia do «cânone sólido e aceite de forma generalizada» assente num aumento do número de críticas negativas «honestas». Substituir a verrina pela honestidade, eis o que não se afigura como solução para o problema do valor em Literatura. Mas não sejamos severos. O Luís Miguel - repito - arrisca aqui pisar terrenos que praticamente apenas neste blogue (perdoe-se o exagero) vão sendo desajeitada e preguiçosamente pisados.
Segundo problema: a tendência para polemizar contra tiques ideologicamente institucionalizados num país onde a esquerda política teve inegável relevância literária, leva o autor a entusiasmos político-sociológicos que ferem o tom geral de moderação das suas argumentações ao nível da história literária. Diz a certo momento que «Este medo de contaminação relativo a tudo quanto nascesse
além-fronteiras, meio século mais tarde, tornar-se-ia o cavalo de batalha dos
filósofos filofascistas ligados ao Estado Novo, o Grupo 57. Esta é uma das
muitas semelhanças que irmanizam a I República e a ditadura, embora o seu
aprofundamento não costume estar no topo das prioridades dos historiadores.» Muitas semelhanças que irmanizam a I República e a ditadura? Façamos uma dupla pausa. I República. Ditadura. Parecem-me dois conceitos diferentes. Nem seria necessário sair do reino da filologia para justificar as razões de não chamar à ditadura, II República, dadas as enormes diferenças entre esses dois regimes políticos. E isto fazendo uso da teoria apreciada pelo Luís Miguel Rosa (se as coisas não foram aprofundadas é porque não precisam de aprofundamento). Aliás, esta ideia das semelhanças entre I República e Ditadura é uma banalidade divulgada pelo grupo estrangeirado produzido em Oxford e inseminado artificialmente nessa dourada teta do Orçamento de Estado, o Instituto de
Ciências Sociais (peço desculpa, acordei mal disposto). Aqui, o Luís Miguel Rosa volta a incorrer num outro erro que, justamente, pretende censurar: neste caso, cometeu o pecado da verrina, pois faltam dados a confirmar este tremendo juízo disparado a talhe de foice entre a rápida caracterização de um intelectual republicano.
É aliás a única crítica de fundo que tenho a fazer ao belo texto de Luís Miguel Rosa: mistura a
génese do nacionalismo (um fenómeno bastante abrangente e complexo, comum a quase todas unidades políticas existentes no planeta terra) o medo da colonização cultural (uma realidade mais circunscrita mas ainda assim bastante comum a outros espaços nacionais) com os problemas da crítica literária em Portugal (um problema de contornos especificamente nacionais determinado pelo tamanho da indústria editorial, a qualidade e quantidade das Universidades e os níveis de alfabetização da população). Resolvido este problema, o ensaio do Luís Miguel seria das coisas mais valiosas escritas em portugal nos últimos tempos
Terceiro problema: oscilação psicanalítica entre a evidente censura do nacionalismo serôdio e a crítica do provincianismo que, como quase sempre - e veja-se o caso de Eça de Queiroz -, redunda numa bipolarização entre declarações de amor ao bacalhau de cebolada e homilias sobre a superioridade intelectual dos anglo-saxões.
«Pode-se facilmente escrever uma história da tradição de os autores portugueses acusarem as próprias épocas de incompetência generalizada, excepção feita ao acusador e compinchas».
E logo adiante:
«Nenhum escritor merece ser atacado em duas linhas rápidas de
um artigo, sobretudo quando esse ataque serve apenas o engrandecimento do
favorito do crítico. O efeito que isso tende a ter sobre mim é questionar a
parcialidade do adido. Isto é uma coisa, entre tantas outras, em que o modelo
anglo-americano da crítica literária nos poderia ensinar algo sobre foco e
acentuação do positivo. Eles sabem separar a comemoração da aniquilação. Quando
um crítico anglo-americano quer festejar um escritor morto há décadas, não
desperdiça cinco parágrafos a lamentar o quão maus todos os escritores são hoje
em dia; explica da primeira linha para a frente os méritos do seu favorito.»
Jesus, Maria, José! «Foco e acentuação do positivo»? Nada me move contra seminários motivacionais mas creio que, neste particular, Luís Miguel se perdeu no seu amor pelos estudos ingleses. Bastaria um conhecimento tão profundo da sociologia da literatura inglesa como Luís Miguel Rosa demonstra ter da portuguesa, para fazer coro com Sebald, citando Goethe: não há ódio como aquele que é manifestado entre literatos. Só neste país é que se diz «só neste país» para citar a canção de um cantor desafinado e mesmo assim corajosamente detentor de uma carreira de razoável sucesso. Luís Miguel Rosa tem igualmente de rever este ponto no seu texto. Há problemas específicos do meio literário português e há problemas estruturais de qualquer meio literário. Como o próprio afirma, a inveja e a maledicência não são monopólio nacional. E muito menos os esquemas de apreciação literária anglo-saxónicos servem como modelo no complicado panorama estético, tecnológico e político em que nos encontramos. Aqui, caro Luís Miguel, como em tudo na vida, cada um está por sua conta.
Quarto problema: alguma confusão entre a fundamentação lógica da crítica literária e um esboço de catecismo para uma boa vida.
Luís Miguel Rosa considera que o esquecimento é não só natural como desejável e depois procura demonstrar que em muitos casos não se verifica sequer um esquecimento. «Opinadores culturais nunca aceitam que os imbecis, usando critérios estéticos rigorosos e válidos, possam ter decidido não atribuir qualquer grandeza aos seus favoritos.» Compreendemos, o assunto não é fácil. Luís Miguel oscila aqui entre o imortal argumento liberal aplicado à literatura (e que é não só o resultado da colonização estrangeira - não discuto se com efeitos civilizadores ou barbarizantes - mas também um fruto apodrecido da autoridade ideológica vigente: tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis) e o impulso para considerar a crítica literária um artifício humano gerador de consequências e produtor voluntário de hierarquias, valorizações e efeitos económicos. Chega a aflorar o assunto, quando refere as quantidades industriais de livros e textos produzidos pelos sistemas de informação (sejam livros, revistas ou, hoje em dia, redes sociais) mas desiste perante a dificuldade e deixa depois à consideração de um mecanismo ético individual - a honestidade - a resolução do problema, profundo e perturbador, a saber, a dimensão política e reputacional de um sistema literário nascido de uma cultura elitista e invadido pela democratização da escrita e multiplicação de tecnologias de difusão de textos. Para Luís Miguel Rosa resta esperar de quem escreve nos jornais, quem edita, quem ensina, a defesa e o amar de um conjunto de «autores preferidos», divulgados com argumentos sólidos. E a crítica Luís Miguel? E a crítica? Se é fruto da subjectividade, incorremos noutros fascinantes problemas: deverá o Estado financiar Universidades onde se ensinam Estudos Ingleses?
Bem sei que o decadentismo, salpicado de nacionalismo e verniz poético, precisa das apropriadas doses de naftalina. Mas é igualmente preguiçoso considerar que as coisas são pela simples razão de que existem razões para o terem sido, o que nos dispensa de explicar as razões e – ainda melhor – nos exime de sair à rua com um programa de trabalhos e melhoramentos para o que consideramos ter sido mal construído por essa engenheira feminista, a Natureza. Mesmo se estamos a falar sobre a Natureza da efeméride literária. Não se pode demolir a tendência para o decadentismo - censurando todos os que diariamente engrossam o coro diante da perda de valores - para depois abraçar uma outra versão Correio da Manhã TV da filosofia Ocidental: as coisas sempre foram o que são.
«Dos clássicos não aprendemos que o passado foi mais simples,
mais apetecível; aprendemos que o mundo sempre foi tão horrível quanto
suspeitamos que é.»
Discordo! Com os clássicos aprendemos que a cada nova geração é preciso reinventar o mundo (sejam as nossas ideias sobre o horror, sejam as nossas concepções sobre as diferenças entre o passado e o presente) e o julgamento sobre a nossa responsabilidade nessa interminável batalha de dar sentido às coisas, será medido pela fertilidade do nosso trabalho (escrito e publicado) no alívio do sofrimento e no alcance da sobrevivência para as gerações futuras. Mas compreende-se que Luís Miguel Rosa não pudesse corresponder a exigências de um nível, digamos, olímpico.
Em suma, aplaudindo o que interessa: Luís Miguel Rosa apresenta uma boa ideia e um mérito raro e demonstrado. A ideia, consistente e brilhante, reside na defesa de uma crítica literária mais exigente.
«Quais são as probabilidades de uma pessoa nascer numa geração tapizada de génios? Em Portugal são mesmo muito boas! A literatura não é uma caridade; o talento é sovina, não partilha os seus dons com as massas por geração – excepto por cá. »
O mérito raro e demonstrado reside na apresentação de dados e no esforço de fundamentação como pouco se tem visto na imprensa publicada. Como o próprio
afirma, o sentido global é fundamental para o crítico, e o conhecimento da
história literária portuguesa apresentado por Luís Miguel Rosa é enciclopédico. Teme-se que Rosa durma na secção de
revistas e periódicos da Biblioteca Nacional. As correcções de erros factuais
sobre conferências, prémios e artigos de jornais são impressionantes. Que possa existir
alguém disposto a passar horas destruindo os globos oculares diante de
micro-filmes e esquecidas edições da Colóquio Letras de 1958 ou ignorados números do Jornal de Letras de 1969, para saber em que ano Natércia Freire foi
agraciada com uma medalha ou Artur Portela Filho conferenciou por trás de uma
mesa com um arranjo de flores, acerca das técnicas de Robe-Grillet, é constatar um acidente social e contrair
uma dívida da qual nunca nos poderemos libertar. Como os limites da racionalidade
humana (e já agora, também os da memória auxiliar) são uma realidade confirmadíssima pela ciência,
tememos pelo que faltará a Luís Miguel Rosa noutros campos essenciais do conhecimento. Mas
deve dizer-se com franqueza: se a especialização pode ser uma virtude, aqui está uma indesmentível confirmação. Já o suspeitávamos, mas é sempre bom poder confirmar como na crítica literária, a exaustividade dos dados aduzidos aos argumentos pode ser muito frutuosa na hora de construir juízos críticos mais exigentes.
Deixo-vos com
um emblema de coragem:
«Há três anos ainda pude comprar 6 livros dele (José Cardoso Pires) na Leya na Feira do
Livro; tenho a edição da BIS d’O Delfim, leve, barata, portátil
e livre de prefácios de Gonçalo M. Tavares.»
Com ou sem
esquecimento, com Luís Miguel Rosa, há esperança para a crítica literária em Portugal.