Que é a poesia mais que o boxe, não me dizes?
(...) Esperam de 1 a 10 que a gente oxalá não se levante
Alexandre O´Neil
Como garantir o espírito guerreiro, os ímpetos furiosos e a crueldade necessária
à literatura? Esse é o grande desafio existencial.
Mas essa novela das gajas serem um recurso escasso e principal razão dos conflitos entre homens acho que já foi. Agora há para aí gajas a dar com um pau, e os homens passaram de predadores a presas. Acho até, na minha infinita e ignorante, porém confessa, bruteza, que a curva da procura de gajas por parte dos gajos já cruzou a de gajos por parte das gajas sendo aquela descendente(x= ay-b) e esta ascendente (y=ax+b).
O mais famoso zombie do audiovisual mundial, a rtp 2, passa neste preciso e exato momento um elaborado documentário sobre todas as coisas fundamentais da vida, a saber, velhinhos nadadores de vários estilos e nacionalidades mentais a elaborarem sobre livros, ópera, cinema de autor, recordações dos coitos intelectuais dos anos 60, a carta do bispo do Porto, o engarrafamento industrial de água benta, as costuras de ouro sobre verde esmeralda dos Paramentos romanos, as intraduzíveis metáforas da Patrologia grega, as razões da queda de Constantinopla, as belezas intangíveis da ladainha e outros elementos fundamentais para os desafios do século XXI, incluindo a falta de sono das adolescente, Santa Catarina de Siena, rogai por nós. Bem se vê que estando eu em casa a esta hora, me estou igualmente a guindar aos corredores da fama com acelerado sucesso e espero um dia constar de um documentário onde pelo menos o número de velhinhas com material biográfico e anotações pitorescas sobre a minha estrondosa queda na irrelevância cultural seja superior ao número de académicos mais feios que um bode da serra da Estrela, a lacrimejar sobre hipotéticas conversas de que, deus me valha, espero nunca vir a ser participante.
Felizmente não estou (ainda) rodeado de garrafas vazias. Calma, também não estou a babar ressentimento para um alguidar de latão. Apenas precisava de conferir informações sobre contratos portugueses quatrocentistas envolvendo transporte de 50 mil quintais de pimenta, cravo e noz moscada, onde, note-se, se engana à tripa forra a prestigiada República de Veneza, e os vaidosos banqueiros genoveses: saudosos tempos em que sabiamos organizar uma bela urdidura económica. Entretanto fui derrubado por toneladas de cultura e estou neste momento a teclar deitado no tapete da sala, procurando libertar-me do incomensurável peso cultural que me esmaga a traqueia. Estão cá todos os vultos: Benard da Costa, Alçada Baptista, Agustina Bessa Luís, Vasco Pulido Valente, Guilherme de Oliveira Martins, e até um dos vários Lobo Antunes de serviço, em suma, pessoas inspiradas pela revista Sprit (um monumento intelectual do século XX, logo a seguir às obras completas de Joseph Ratzinger e aos discos de Nelson Ned) pessoas que, pelos vistos, se ofereceram em imolação num outro monumento intelectual do século XX, a revista O tempo e o modo. Não tenho nada contra isto, nada. Aliás, Jorge Silva Melo acaba de confessar que sendo uma criança já ouvira falar em João Benard da Costa, acabando (salvo seja) pouco depois por ser, parabéns, aluno do ilustre cinéfilo. Há aqui vários pontos de contacto entre Silva Melo e alf, pois nos tempos em que eu próprio era uma criança a correr nas superfícies plantadas de trigo da periferia de Lisboa, já ouvia falar em Minervino Pietra, Fernando Chalana, Tamagnini Nené, prova cabal de que Silva Melo não tem a menor hipótese numa disputa em matéria de erudição, como bem o demonstram estas referências onomásticas. Para que é que fazem estes documentários se sabem que não existe hipótese de competição com este autor? Mas quero concentrar-me no essencial.
Pineddu, Bagheria-Palermo (Ferdinando Scianna,1962).
A fotografia aduzida sintetiza todo o conjunto de teoremas a partir dos quais tenho procurado demonstrar a minha vocação de escritor, designadamente, o facto de uma pessoa pretender dar lição de trapezismo mental, em salto, e não partir os dentes. Porquê? Além de uma vontade de que não me chateiem, e de uma adenda lateral a este príncipio, isto é, a necessidade de passar o maior tempo possível a conversar, por leitura, com pessoas mortas e que, por isso mesmo, já não chateiam, a verdade é que não sei dar uma resposta consistente, é a triste verdade. Será a escrita uma encriptada busca do gajedo pestaduno? A propósito, seria necessário uma investigação sobre os fundamentos filogenéticos desta atração pelas sobrancelhas carregadas e as longas pestanas dos indivíduos do sexo feminino: o Gonçalo M. Tavares, como adepto das investigações, estará disponível? Não creio. Teremos que prosseguir sozinhos por estes perigosos vales assombrados. Será a escrita uma forma de obter materiais com que possa disputar-se o gajedo pestanudo? A questão exige um ponto de ordem historiográfica.
Gary Becker, um neo-liberal e, por antonomásia, comedor de criancinhas ao pequeno-almoço, defensor do imperialismo americano (embora se tenha casado com uma iraniana, ao contrário do Francisco Louçã e do Fernando Rosas que não consta terem casado com pessoas do médio oriente) Gary Becker, repito, conspirador e esbirro ao serviço de todas as ditaduras latino-americanas, as reais, as fantásticas e as sonhadas por todas as revolucionárias mamulhadas leitoras de Neruda, estudou durante mais de trinta anos merdas importantíssimas a que ninguém quer prestar atenção, incluindo os estimados e aborrecidos velhinhos suecos que lhe atribuiram o nobel. A divisão do trabalho entre homem e mulher foi sempre fortemente afetada pela especialização da mulher na produção e acompanhamento do crescimento de novos indivíduos, na linguagem dos economistas (investimento em capital humano) razão pela qual, durante muito tempo, a eficiência da casa empurrava a mulher para distribuir o seu tempo e capital nesta especialização da criança e seu crescimento, por ser muito mais eficaz alimentar e cuidar da educação de crianças, quando se está à espera de crianças, por oposição a outros trabalhos fisiologicamente mais exigentes e perigosos. A redução das taxas de retorno do investimento em filhos, acentuada pela mecanização do trabalho, além de colocar um prémio na descoberta dos contraceptivos, veio lançar a organização da família num
delirium tremens, situação que saudamos com júbilo, não haja margem para equívocos.
Por razões obscuras, a distribuição cromossomática também tem acentuado o crescimento do número de mulheres, mas estas (agora libertadas dos conventos, das profissões domésticas e governâncias várias, da prostituição institucionalizada, e até da enfermagem celibatária, auxiliadas pela capacidade de inibirem a bomba relógio uterina que até à descoberta da pílula os homens teimavam em involuntariamente detonar, pondo-se depois a milhas a toda a velocidade) ao substituirem os seus investimentos em filhos por trabalho remunerado no mercado, passaram a ser vítimas não-especializadas da economia familiar, pois são obrigadas a dividir-se entre reprodução e trabalho no mercado. Contudo, ganharam uma capacidade superior na escolha dos parceiros, ainda que isso não seja exatamente visível devido à feroz competição que, crescentemente, mantêm umas com as outras, o que é aliás típico dos grupos predadores. A econometria reprodutiva do pasteleiro, neste sentido, pouco difere da econometria reprodutiva do literato e não julgo que o impacto do aumento do número de mulheres/homem no mercado das relações sexuais tenha particular influência na construção mental de um escritor, a não ser como gajo que vê passar os comboios porque ganha mal e se vê, mais vezes do que seria aceitável, confundido com pessoas que preferem mulheres do ponto de vista da óptica do conselheiro e não do utilizador. Como bem lembra o Tolan, o domínio da culinária é bem mais apreciado, o que se demonstra pela explosão de homens-cozinheiros de sucesso destes últimos cinco anos, mas mesmo isto teria que ser submetido a ponderações controladas das diferentes curvas de preferência das mulheres, por idade, rendimento anual, profissão, habilitações escolares, medidas anatómicas, etc, etc, etc.
Isto para dizer que a emergência alienígena da vocação do escritor (na bela imagem de Ex-Vincent Poursan, uma febre) é também, segundo Pavese, o mentor de Calvino e tradutor de Melville, uma cena que labora misteriosamente não se sabe a partir do quê, sendo uma função de merdas obscuras como tantas outras em que por vezes na vida incorremos sem saber muito bem porquê. Porque é que Cardozo desatou a marcar golos com a classe de um Van Basten, sendo ele um dos mais acabados cepos que foi dado contemplar sobre os relvados portugueses desde Pringle? Não se sabe, é tempo de assumir com coragem. Não sabemos, pronto, não se pode saber tudo. Não escrevemos tanto para procurar gajas (o que julgo que não era o ponto do Tolan) mas escrevemos sim, para não estar quieto, ou para fazer de conta que servimos para alguma coisa, ou para sossegar o rodízio imparável da memória, ou para dar sentido a imagens antigas que magoam até ao agudo vómito de um espelho que nos devolve uma mutação horrível do rosto. Escrevemos tal como andamos meses, meu deus, às vezes anos, de cabeça perdida na perseguição de uma dada forma feminina de colocar as mãos sobre uma mesa de mármore, o acentuar estrangeiro de ondulantes sílabas, o silabar de uma boca capaz de produzir citações de Petrarca e emudecer depois durante semanas, o olhar pestanudo e transparente cujo significado não chegámos a compreender.
Jorge Luis Borges, Palermo (Ferdinando Scianna, 1984).