Implícita a todos os problemas possíveis e imaginários está a pergunta pelo lugar da violência nas nossas sociedades domesticadas. Parece que eliminámos a agressão generalizada, encarcerámos os dissidentes, os psicopatas, os desviados e os desviantes, isto tanto pela monopolização das armas, que entregámos, e bem, à polícia e ao exército (continência) como pela mecanização do processo jurídico. Porém, esta pastoral de rebanho que corre como um programa ultapassado nos circuitos do nosso imaginário, quase com a mesma naturalidade com que piscamos os olhos diante de um perigo, tem uma correlação positiva, no caso dos países meridionais, bastante acentuada, com a domesticação do debate, com o enfraquecimento na utilização da língua, com o adormecimento das nossas opiniões. Chama-se comunicação de massas, jornalismo, impérios da informação, e como sabem, constituem o nosso inimigo predilecto.
Porque razão seremos nós portugueses tão avessos ao confronto? Porque no geral, e por motivos sociológicos, e não por razões fisiológicas, bem entendido, os portugueses são tão fraquinhos no capítulo da ginástica argumentativa e tão desprovidos de vontade de pensar que apenas os malucos mantêm o hábito de exercitar o confronto verbal e mental com outros malucos da mesma estirpe. Há nesta domesticação do debate, potenciada no caso português pela ausência de alfabetização da generalidade dos nosso avós, e nesta quase total neutralização da sátira (só os políticos continuam a deter o monopólio da agonia por linchamento público) potenciada pela ausência de Parlamento e a insistência no segredo do processo político, uma consequência terrível: a tão famigerada meritocracia não ultrapassa a fase pré-natal o que resulta num conservadorismo social tenebroso, ficando as pessoas «estúpidas» condenadas à sua «estupidez» por ausência de educação ou devido aos custos elevados da educação. Não quero dizer, tenham paciência, que somos todos Homeros e Newtons em potência. Quero dizer que vender gato por lebre (ou cavalo por vaca) é um problema típico das nossas sociedades e deve ser combatido com vigilância e discussão aberta, franca, corajosa. A distância que vai da educação à simplificação cultural é a mesma que vai da democracia ao fascismo comercial, um regime que temos vindo a desenvolver com afinco no Portugal do século XX.
A literatura é um caso evidente, por ser dos sectores onde o confronto aberto e a discussão crítica é apenas uma miragem longínqua, sobretudo porque os gajos dos livros, e posso comprovar, conhecem-se todos. Gosto particularmente de todas as pessoas que insistem em achar normal e até adequado que o nivelamento do consumo cultural das massas seja feito por baixo mas que consomem alegremente produtos de elite. Quanto ao povo, não se deve educar, porque o povo só gosta de porcaria. Deve ser por isso que existe a publicidade agressiva, precisamente pelo facto de as pessoas já saberem o que querem e ser benéfico à saúde financeira das empresas torrar milhões e milhões a convencer as pessoas de um facto incontestável e plenamente assimilado desde os séculos dos séculos.
Os meus queridos leitores, por exemplo, parece que não gostam da violência verbal, do combate de ideias, da sátira impiedosa, da gargalhada felina, da chacota dos homens públicos literários por vezes levada a cabo neste blog. A menos que um qualquer pobre político tolinho ou uma tonta beta e beata especializada em caridade amadora se prestem a servir de bode expiatório (que como sabem era um bode que os judeus sacrificavam ao pontapé e à pedrada pelas ruas da cidade, marcando com o seu sangue expiado as portas das famílias por motivos de segurança metafísica) a verdade é que nos é pouco simpática a agressividade argumentativa. Contudo, deve ser evidente para todos os habitantes do universo que no meu caso, discordo com todas as moléculas do meu organismo desta vegetativa catequese servida em bandeja oriental.
Se as figuras públicas, de onde não podemos isentar as figuras públicas literárias, acham por bem circular em cartazes nas traseiras de auto-carros suburbanos ou em fotografias de tamanho real em postos de abastecimento de compustível, dois casos reais com os quais fui, sou, confrontado, porque razão me é vedado fazer o meu comentário à ostentação da sua presença metafísica no meu espaço visual? Se os mesmos postam em blogues os seus raciocínios pedantes e vaidosos, e beneficiam, legitimamente, da exposição pública, espetando-nos sem aviso a sua cara na nossa, porque razão não podemos nós fazer o nosso juízo no mesmo espaço público e contra-atacar esta tentativa de coroamento simbólico na era da democracia com um belo tomate podre metafórico, lançado pela multidão anónima e esfomeada do mesmo protagonismo metafísico? Queremos combate, barulho, tareia, ou a liberdade de expressão serve apenas para ostentar na lapela de jornalistas gordos e ociosos cuja vida é dedicada a reproduzir as opiniões geradas automaticamente pelo sistema? Os meus comentadores não vêm aqui livremente largar as suas recomendações e gracejos, correções e críticas? E não continuamos todos de boa saúde, retirando bastante proveito da cabeçada verbal? Não podemos nós exercitar esta fértil produção de opiniões críticas de modo a tornar plural o sistema em que vivemos? Não era suposto isto ser uma coisa dinâmica?
Ora, eu gosto particularmente de policiar coroamentos indevidos, estragando (ou tentando estragar, isso depende do caro leitor) os planos de negócio a editoras que não preservam critérios de controlo de qualidade, arrastando a literatura pela lama, desperdiçando recursos, e potenciando eventuais despedimentos e confundindo democratização, uma coisa nobre e digna, com aviltamento de um instrumentos divino como é o livro. Veja-se a constante elegia dos editores em torno do mercado do livro: que não se vende, que é difícil, que está mau para todos, que a crise obriga a cortes, etc. Então mas não são eles que sabem o que as pessoas querem? Como pode então o mercado do livro ser mau e limitado? Veja-se o seguinte exemplo que pessoas maldosas me fizeram chegar às mãos:
Actualmente, o meu clitóris não é mais sensível do que qualquer outra parte do meu corpo. É feito de pele, como os meus ombros, cotovelos, joelhos. Creio que endureceu. Ainda é de tarde, são quase cinco horas, mas já se sente o início da noite. Aqui, nos arredores de Reggensburg, há pássaros que só aparecem a esta hora. Não sei porquê, alguém deve saber. São pássaros pequenos que fazem barulho.
Nem mais, o leitor está a ler um excerto de José Luís Peixoto,
publicado na revista Bravo! (2009, São Paulo) o que comporta desde logo uma vergonha nacional sem precedentes e que é necessário reparar sem mais demora. Estimados cidadãos do Brasil, nós não escrevemos assim, isto é só uma bricandeira, um equívoco, para ver se estavam atentos, ainda podemos fazer negócios proveitosos para ambas as partes, ok? Tentemos analisar o fenómeno, quanto mais não seja para travar a dor trágica da humanidade que permite tão alegremente que o absurdo nos visite de quando em vez. Dando de barato que as mulheres ensaiam correntes de consciência em torno do clitóris, não nego, não nego, e que o clitóris pode deixar de reagir com sensibilidade, espero que por uso adequado, é-me muito difícil aceitar que existam na Áutria ou na Alemanha, onde a acção decorre, pássaros pequenos que façam barulho. Se assim fosse, seriam fuzilados sem piedade. Aliás, a continuação do pequeno conto, fornece um padrão comportamental que não se ajusta à existência de pássaros pequenos que venham fazer barulho, ainda por cima à mesma hora, junto das janelas austríacas.
No passado, o meu clitóris deu-me grandes alegrias. Marcou o meu epicentro. Sou uma mulher, não deixei de ser uma mulher, mas agora tenho outros interesses.
Isto é legítimo. A mulher sofreu um degosto e quer esquecer a relação com o seu clitóris, apesar das alegrias providenciadas por esse organismo feito de pele, isto segundo o narrador. Bem, isto é uma mulher visivelmente magoada pela vida, atropelada por sensações bizarras que muito justamente se intrometeram entre ela, o seu marido, o clitóris dela, e o amante. Este amante devolveu uma certa alegria de viver à mulher burguesa, que recuperou a chispa de paixão da juventude, mas o marido, frio e sexualmente ausente durante dezasseis anos, segundo o pungente retrato, permanece como uma memória perturbante, apesar dos esforços da mulher para afastar essas recordações cinzeladas pela dor, guardadas entre veludo envelhecido, uma imagem enfraquecida mas doce, como o som de uma caixinha de música pontapeada para longe, de onde vai brotando ainda uma melodia cada vez mais roufenha mas agradável. Vejamos o que pensava disto tudo o marido.
Não sei o que ele pensava de mim. Até podemos ficar no teu hotel, dizia o meu marido, sem saber o que dizia. Literatura. Adorava que o meu marido gostasse de ler. Tenho a certeza de que adoraria os russos: Tolstoi, Dostoievski, Gogol. Ah, Gogol. Quando quis trabalhar, o meu marido conseguiu-me uma posição a gerir uma pousada quase no centro de Amstetten. Após uma semana de serviço, meados de setembro, o Josef possuiu-me na cama dupla do quarto 28.
Ah, Gogol, Gogol, grande maluco, Ah Gogol, Gogol, como a vida é, vê lá tu, Gogol, Gogol, ainda ontem escrevias fabulosos contos e agora andas aqui a ser arrastado numa revista brasileira no meio de uma narração insólita. Portanto, recapitulemos: o marido recolheu a lenha para se queimar - deixar a mulher ir para uma pousada -, e o Josef, o amante, acendeu o fósforo. Mas atenção, tanto o marido como Josef acentam perfeitamente na ideia que guardamos dos germânicos, pelo menos tal como Holywood os perpetuou, vestidos de napa preta, com óculos redondos e aos gritos, soltando érrrrres pela atmosfera densa e pesada.
O meu marido é obediente. O Josef tinha verdadeiro sotaque austríaco, claro. Os seus érres davam-me tesão. Durante anos, eu corava só de lembrar-me dos seus érres.
Os érres dão tesão? Só se for ao Jose Luís Peixoto porque uma germânica, penso eu, não notará os érres, ou estaremos a falar de uma portuguesa? Brasileira?
Desde esse dia, até à partida, eu e o Josef comemo-nos como animais, como lobos, em todas as camas da pousada. Engolimo-nos. Em Dortmund, eu sonhava com ele. No duche. Em Weimar, comecei a conformar-me. Em Weimar, tivemos uma cadela, Lassie. O meu marido apareceu com ela pequenina, quando chegámos. Morreu uma semana antes de partirmos para Reggensburg, bem-educada. Conformei-me que não voltaria a ver o Josef. Por isso, nunca quis voltar a Amstetten. O Josef era um segredo para sempre. Havia momentos em que me parecia que só tinha existido na minha imaginação, mas isso é algo que me acontece com todo o passado. Há momentos em que me parece claramente que algum detalhe do passado, a minha mãe, sexo oral quando namorava com o meu marido, sopa de abóbora, só existiu na minha imaginação.
Maternidade, sexo oral e sopa de abóbora. É fascinante que não seja necessário tecer mais comentários porque isto já é tão engraçado assim que tenho medo de estragar o conjunto. Mas agora vem o pior. O Josef desapareceu, os pássaros passaram a fazer mais barulho, o marido provocou um adormecimento do clitóris na sua pobre mulher, o que levou o pobre Clitóris a abandonar o epicentro da senhora e como se isto não bastasse, zás, o Josef é um psicopata asqueroso.
Abril, abril, quando desliguei a televisão, cambaleei pela sala. Agarrei-me a móveis para não cair. E pensei: não. Pensei: não. Até cheguei a sorrir. Não pode ser. O Josef tinha mantido a filha presa na cave durante vinte e quatro anos. Tinha-a violado repetidamente e tinha tido sete filhos com ela, um dos quais morreu. Na televisão e no rádio, chamavam-lhes filhos-netos. A filha do Josef e alguns dos seus filhos-netos viviam na cave. Um deles, uma rapariga com dezanove anos, nunca tinha visto o sol.
Isto parece-me vagamente real, sinistramente semelhante a qualquer coisa, uma exploração vergonhosa e inaceitável do drama alheio, o que justifica em pleno o enxovalhamento público a que aqui se presta o muito mal educado José Luís Peixoto e me retira qualquer peso da consciência por aqui o dissecar impiedosamente. Devo dizer como nota de encerramento que num blogue de um escritor tão famoso como Peixoto, que vende milhares de livros, este texto tinha apenas 5 comentários, todos deprimentemente laudatórios, enquanto neste nosso obscuro blog, as pessoas dizem coisas interessantes quando têm que dizer e atiram tomates podres quando entendem. O que quererá isto dizer? Que já todos sabemos que a estupidez é uma realidade colectiva? Que gostos não se discutem? Que os leitores do José Luís Peixoto são burros? Que os bons escritores apenas serão coroados quando vier o reino de Deus? Não entres tão depressa nessa noite escura, se faz favor. Esbracejemos com fúria contra a morte da luz. Anunciemos outros mundos mais luminosos, honestos e talentosos. Embora consciente da tragédia, gostaria de viver num país mais exigente, e por isso menos complacente consigo próprio e com as suas limitações, se me é permitido o desabafo e parco contributo para a reflexão nacional. Pronto, assunto encerrado. Prometo que não voltarei a falar no José Luís Peixoto.
A todos os leitores descontentes com este post, e desiludidos com a minha insistência no tema, só posso lamentar as nossas diferenças em matéria de economia moral, e prometer que em breve continuaremos com a nossa série de ensaios, a saber:
1. Terá o neo-realismo sido uma forma política artísticamente pobre ou o mais elevado ideial estético do século XX?
2. Billy-Bud de Herman Melville à luz das revoluções burguesas do século XVIII.