quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

"Hoje fui aceite pelos viscerais-realistas. Não houve cerimónia de iniciação. Ainda bem": Arturo Belano logo a abrir "Os Detectives Selvagens" e eu a citar de memória.

A propósito do neo-realismo, o título resume tudo o que eu sei sobre literatura. Mas não é isso que aqui me traz. Olhem com olhos de ver a foto no final do post anterior. Iranianos? Retire-se o tipo com o fez, e a foto poderia ter sido tirada em Portugal. É algo que me vem incomodando desde que vi "The Color of Paradise", esta semelhança entre Portugal e o Irão.

A avó, no filme, é um decalque da minha avó materna até ao pormenor de usar o relógio de pulso atado ao lenço. Ou à alça da bata, já não me lembro bem. Mas lembro-me da sensação de ver a minha avó retratada.

O céu em Bruxelas, continua com uma cor cinzenta-suicida.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Terá sido o neo-realismo uma forma política artísticamente pobre ou o mais elevado ideial estético do século XX? Uma breve introdução em 5 pontos.

1.
Queria começar por me dirigir a um anónimo cuja manifestação da estima se dirige a «blogueres» que permanecendo no anonimato, por serem génios incompreendidos, nada percebem do mundo da edição. Não sei se estava a falar comigo, peço perdão, mas engana-se duplamente se era esse o  caso, pois não só o meu génio é totalmente compreendido, tanto por mim como pelo mundo em geral (ao contrário de outros fenómenos que descendendo de Carlos Magno falam como participantes de A Tua Cara Não Me É Estranha, e espero que tenham assistido ao edificante espetáculo que ontem a Rádio Televisão Angolana transmitiu a propósito de José Rodrigues «Rei David» dos Santos - o homem tem antepassados bíblicos ficou demonstrado) como tenho muito orgulho em não perceber nada do mundo da edição (embora haja imensa gente que percebe, a começar pelos editores, daí os poderosos índices de leitura e consumo de livros dos portugueses, bem como a respetiva saúde financeira do dito negócio) pois se há coisa que me tem animado neste 34 anos de vida é a vontade congénita de me manter afastado de coisas bolorentas, ultrapassadas ou mafiosas, três categorias que enquadram quase todo o fenómeno editorial, com duas ou três honrosas excepções.
 
 
2.
Motivos de força maior têm afastado de mim o tempo necessário para escrever o sucinto ensaio em que se demonstra que o Neo-realismo foi o mais ambicioso projeto literário dos últimos dois séculos, tão carregado de densidade poética e artilharia política que acabaria mesmo por dinamitar-se a si próprio ainda sem ter levantado vôo, deixando um rasto de luz e poeira sobre a terra, o que é apanágio apenas dos grandes projetos. Como Calvino escreveria na sua magistral introdução ao seu romance de juventude O Atalho dos Ninhos de Aranha, romance parido num sotão de Turim a tiritar de frio ainda com os ecos dos disparos partigiani a assombrar as suas orelhas, «as leituras e as experiências da vida não constituem dois mundos mas um só». Os elogios ridículos de Pedro Mexia e Henrique Raposo (isto para citar dois exemplos da geração mais próxima da minha) à prosa de autores como Eduardo Pitta, a par de um consistente, latente e ignorante vituperar da prosa neo-realista, esbarram com as suas declarações, também sistemáticas, acerca da escassez de bons prosadores e narradores portugueses no século XX. A confusão que vai na cabeça das pessoas.
 
 
3.
O mais triste e ignóbil elemento de toda esta situação crítica, diga-se e sem rodeios, é que o sarcasmo com que se cobrem obras como a de Alves Redol e Manuel da Fonseca, a de um homem de um só e belíssimo livro, Soeiro Pereira Gomes, ou mesmo a de um Almeida Faria e Carlos de Oliveira (dois notáveis casos de um esforço estético e filosófico de consistência) o sarcasmo, repito, e os dichotes de salão com que se cobrem autores como estes aqui citados são fruto de uma mistura explosiva e letal, tanto para as inteligências como para a elegância dos produtos críticos, entre a olímpica ignorância acerca da literatura portuguesa em geral, entretanto substituída por contemporâneos ingleses e americanos de qualidade mais que duvidosa, e um preconceito político inaceitável em indíviduos que se querem reconhecidos pela coragem intelectual (risos, risos, risos). Podemos incorrer na importação das toneladas de estupidez que quisermos, isso é com cada um. O que não podemos é ironizar sardonicamente sobre a metafísica experimental dos autores portugueses (pensando apesar de tudo nos últimos 20 anos e esquecendo, por motivos que ultrapassam a minha compreensão, os muitos e bons narradores dos primeiros 80 anos do século XX) para depois louvar a síntese narrativa e a economia do frasear fundada numa simplicidade de processos, mas isto enquanto se cospe sobre os mais conseguidos exemplos disto mesmo, note-se, seja em português ou em italiano, e vou evitar agora o name dropping que nos levaria demasiado longe. O engenho humano até na estupidez é maravihoso de contradições e inventividade.
 
 
4.
Regressando ao sempre incomparável Calvino, «cada experiência da vida, para ser interpretada, apela a determinadas leituras e funde-se com elas». Era este o príncipio neo-realista e estava absolutamente correto. Não se deve julgar o neo-realismo por excesso de compromisso político (uma tautologia das mais ridículas de todos os tempos) uma vez que o que faltou aos neo-realistas, além de sofrimento interior, foi, isso sim, selecionar exemplos de qualidade literária indiscutível que pudessem servir de candeia à tentativa experimental etnográfica. Cunhal ainda apontou para Shakespeare mas era demasiado burguês e pouco inteligente para captar a temperatura poética e o magnetismo filosófico das situações dramáticos do bardo inglês. Deste modo, o neo-realimos caiu no alçapão do interesse, à semelhança de outros estilos menos organizados, tal como o estilo que caracteriza, por exemplo, o próprio Eduardo Pitta, de que me ocuparei em breve. Só que o facto de indivíduos como Pitta, Mega Ferreira ou outros autores menores, cairem individualmente, tem como consequência que o estrondo da queda seja menor. Mas que ninguém duvide: os resultados do falhanço artístico são em muitos casos bastante mais deprimentes e ridículos do que alguns dos neo-realistas citados. Apenas o facto de os ne-realistas cairem em conjunto acentuou a barulheira, chamando a atenção dos estúpidos,  dos mirones e dos abutres críticos. 
 
 
5.
Que os livros nasçam sempre de outros livros é uma verdade só aparentemente em contradição com a outra que diz que os livros nascem da vida prática e das relaçõs entre os homens. Outra vez o subtil Calvino a acertar em cheio. Mas o escritor italiano beneficiava do esplendor cultural italiano, da alfabetização das suas elites, ao contrário das elites portuguesas, indigentes, burras, desde o alto dos rolos da cabeleira até à fivela dos sapatos. A Itália nunca se fechou o suficiente de forma a que não pudesse receber os raios de sol do progresso (isto parece um hino soviético e fica aqui bem) nunca enterrou a cabeça na lama da sua ruralidade e pobreza, ou pelo menos, se não podemos falar por toda a Itália, sabemos que Calvino nunca enterrou a cabeça o suficiente, de forma a que fosse impedido de entender que o neo-realismo estava esgotado no momento em que foi inventado, a saber, nesse pináculo do experimentalismo literário universal, onde se juntam o sangue dos oprimidos e a fúria incontrolável do desejo e das qualidades corrompidas do homem, onde a emergência da maldade se harmoniza com a mais extraordinária tapeçaria metafórica que foi dado ao mundo conhecer depois de Shakespeare, esse momento em que a política foi fundida com a beleza. É claro, caros leitores, estou a falar do momento em que Herman Melville escreveu Moby-Dick. 
 
Henri Cartier-Bresson
Irão. Mazadaran. 1950.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Fica sempre no meu peito uma saudade.

Regresso do meu silêncio para vos dizer que devido a não ter tempo para as merdas (excepto a que o meu filho produz em abundância, o senhor seja louvado), pedir ao alf e demais que elaborem rapidamente um plano de acção para o que é preciso fazer para resolver os problemas da humanidade no seu geral e do Sporting em particular, pois já estou farto de vos ver falar e não fazer nada.
 
Entretanto deixo-vos um dos melhores momentos da tv em portugal dos últimos 30 anos, visualizado num destes dias enquanto se esperava por qualquer coisa. Avancem até ao minuto 23 e 30 segundos.

Carta aberta para uma reconciliação comigo próprio.

Queridos e estimados interessados nas coisas:
 
 
1.
Pensemos na imprensa com tinta e caracteres de ferro no século XVII. Em face do risco e dos custos, pelo menos na Península Ibérica, o caso que conheço com mais detalhe, quem publicava em quantidade? À parte os Manuais de  Confessores e os Espelhos de Penitentes, publicavam os juristas que defendiam as Casas Aristocráticas nos tribunais do reino, os Bispos que pretendiam fazer cumprir as Constituições Sinodais e a Corte, liderada pela Secretaria de Estado, que pretendia generalizar o conhecimento e obediência da lei régia. Seria assim no norte da Europa? Como é evidente não, por muitas e variadas razões que explicarei noutra oportunidade. Continua a ser assim em Portugal? Sim, de algum modo, embora os Bispos tenham sido substituídos por outra forma de poder religioso: o capital financeiro e o profissionalismo.

 
2.
A prática editorial dependeu sempre do avultado risco da impressão, em que há não só um investimento inicial considerável, composição, máquinas de impressão e corte, tintas, trabalho mecânico, como um risco elevado devido ao desfasamento temporal entre a edição das obras e o seu consumo. Esta divergência entre os tempos de produção e consumo, além dos elevados custos de produção, e diante da forte procura por textos escritos (o humano é sempre a coisa mais interessante que existe para consumir) gerou, capitalisticamente falando, a especialização profissional do editor, criando um incentivo automático para investir no conhecimento do comportamento daquele mercado concreto, o consumo de livros, como criando um interesse distinto do autor, o que garantia um laboratório de legibilidade do livro, isto para não falar das mais perturbadoras questões culturais (as últimas a desaparecer) em que o autor, não querendo sujar as mãos, oferecia a oficiais mecânicos e editores (impressores até ao século XIX) a parte suja do mundo do livro.
 

3.
Quando a parte suja da sociedade (escrivães, mecardores, negociantes, mecânicos, astrólogos, cirurgiões) tomou gloriosamente a pilotagem da nave do Estado, entre o século XVII e XVIII, os editores transformaram-se nos investidores de um comércio que com a expansão da alfabetização, foi ganhando cada vez mais protagonismo e que só iria começar a enfraquecer com o domínio maxweliano da electricidade. Shanon e Von Neuman deram as restantes machadas na informação em papel. Mas entretanto ficamos com essa estranha figura setecentista, o autor, que permitia lucros avultados e vendia impudicamente as suas vivências para citar o filósofo de Turim. O autor ainda não percebeu que já não precisa das editoras mas como o autor é conservador e não acredita no seu trabalho e apenas confia nos poderosos meios da propaganda, tal como existem nos meios de comunicação de massas, e não quer confiar a sua sorte às redes de proximidade, esperando depois, se for caso disso, que a sua qualidade faça o resto, até porque as pessoas são «estúpidas» (e atenção que eu compreendo estes receios) entrega-se na cruz da miséria editorial para receber o trono público da consagração culturalmente totalitária e fascista, e de modo algum democrática.
 

4.
A informação é condicionada por limites tecnológicos mas também por limites políticos e culturais. Em Portugal enfrentamos um duplo problema. A generalização do computador pessoal permite-nos experimentar outras formas de mercado, com maior e mais direcionada produção de autores e consumidores de textos. Mas não só estamos sempre na cauda tecnológica como enfrentamos no nosso caso particular o cinismo militante e a ignorânica olímpica de que temos aqui falado. Ou está sempre tudo bem como está, com excepção das «reformas» que não podem ser adiadas (risos), ou é preciso fazer a revolução, sendo mais frequente, pelo menos na sua expressão pública, a primeira hipótese de opinião.
 

5.
As editoras travam o comércio digital, apostando apenas nessa coisa ridícula do self-publishing (esmifrando os desgraçados) em vez de desenvolver software que permita direcionar os públicos e multiplicar o número de autores interessantes. Quantos comentadores deste blogue não escrevem coisas mais interessantes do que vejo publicado, por exemplo, nas crónicas de valter hugo mãe? Será crime criar um incentivo para que os comentadores sintam que vale a pena serem autores e serem recompensados por um trabalho que interessa às outras pessoas? Terá esse comércio escala para quantos autores? Posso garantir que se não existirem milhares de pseudo editores, mais milhares de funcionários da propaganda a mamar no texto, muito mais gente poderia viver da escrita. Em segundo lugar, teremos que lidar com a nossa católica apreciação do silêncio, o resguardo, dos que não querem a fama, nem a ribalta, servos sofredores, filósofos de vão de escada, incompreendidos do sistema. Podia dar-se o caso (é só uma sugestão, calma) de existir um retorno positivo para todos no facto de as pessoas publicarem as suas ideias, e as discutirem, e contribuirem para que mais pessoas publicassem as suas ideias, tentativas narrativas, conhecimentos de vida, experiências irrepetíveis.


6.
Mas não, esqueçam, o dinheiro e o profissionalismo são essenciais no mundo editorial, sobretudo porque contribuem para afunilar o número dos que falam e alargar o número dos que ouvem. Utilizar a computação para harmonizar quem fala e quem ouve, por nos ter sido permitido baixar, e muito, os custos de produção e distribuição da informação, isso é um pecado que o mundo da edição em papel e os portugueses em geral não cometerão, pessoas adestradas no culto do anonimato, da desistência, da contemporização, do fado, ah, esta magnífica explosão do fado, que pelo menos no meu caso já não é possível suportar sem esmurrar mesas e pontapear cadeiras.
 

7.
Felizmente, e para responder à pergunta sobre  articulação da pornografia com a felicidade, o sistema nervoso e o conjunto de instintos biológicos oferecem uma base que não deve acorrentar-nos mas que tem consistência suficiente para nela fundarmos o que queremos ser. Basta utilizar o que aprendemos sobre as fases do projeto. Estabelecer objetivos e utilizar as ferramentas, na vida como no casamento. Agora não me venham, pela vossa saúde, com teorias da auto-organização do mundo com base em resumos treslidos de obras sobre economia moral escritas no século XVIII.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Matic, o melhor médio que me lembro de ver jogar, se bem que eu só tenho 34 anos, note-se.

Antes de mais quero agradecer ao Tolan (sinceramente e sem qualquer ironia) ter feito o trabalho de casa. Passemos à correção.
 
Quando nada o fazia prever, eis que o atarefado Tolan, libertado dos seus deveres profissionais pelas leis da oferta e da procura, leis que sem dúvida permitem ao profissional Tolan escrever de forma tão brilhante, se bem que amadora, em blogues (o que espero não o impeça de aspirar à qualidade mínima que a si mesmo se impõe) resolve oferecer em bandeja de prata a sua própria cabeça, isto é, ao pretender criticar um suposto artista, apresenta no seu próprio texto um exemplo prático e actualizado daquilo que pretende criticar. Começo então por recomendar ao sacerdote Tolan a leitura do seu mandamento número 4, a saber, Tem sempre presente que em caso de emitires crítica, ela deve ser para ti. Nem mais.

Não sei se o Tolan reparou, enquanto elaborava a sua lista de mandamentos para a sagrada salvação do artista enquanto pessoa moralmente irrepreensível, mas incorre no mesmo erro que pretende corrigir. Se era esse o objetivo, parabéns pelo acto de contrição mas creio que a minha obra é demonstrativa da minha difícil relação com as Igrejas da mortificação espiritual. Vamos dividir pedagogicamente o problema em dois. As coisas que o Tolan julga criticáveis na minha crítica de José Luís Peixoto - que gerou sem dúvida os seus belos mandamentos do artista - e as coisas em que o Tolan se revela um crítico de fraca qualidade, enquanto não consegue ser o artista que sonha para si e vai criticando nos outros o que julga indigno dos pressupostos sociológico-religiosos da arte da arte da arte, o que é aliás aquilo que pretende criticar na minha crítica de José Luís Peixoto. Como são labirínticos e fascinantes os caminhos da mente humana.
 

O Tolan enquanto crítico:

O Tolan enquanto crítico é uma desgraça, expliquemos porquê. Começa por inclinar respeitosamente a cabeça diante da livraria Bertrand, não se percebe com que objetivo. Se era ironia, não compreendi, e portanto há que encomendar rapidamente uma Introdução às Figuras de Estilo, mas pode ser apeans o facto de eu ser muito estúpido, às vezes acontece, tenho que admitir. Começa por pretender analisar o estilo de Calvino e insinua que Calvino utiliza parêntesis e travessões porque se dá mal com a sequenciação das ideias pela escrita e, como tal, com a própria linearidade do tempo. Perdão? A utilização de parêntesis implica uma má relação com a sequenciação de ideiais pela escrita? Não me lembro de ter sido dado como pressuposto que: a) que a sequenciação implica rapidez - eu posso sequenciar frases de trezentas palavras; b) que os parêntesis impedem a sequenciação de ideias - eu posso sequenciar frases de trezentas palavras dentro de parêntesis; e c) a não sequenciação das ideias impede a linearidade do tempo. Neste último aspeto creio que o Tolan incorre em dificuldades que se prendem com o seu paradigma de eficiência: a frase curta e o avanço de factos na narrativa, o que é apenas um dos milhões de caminhos que o artista pode utilizar para se expressar. Confesso antes de mais que não entendo o que é linearidade do tempo, e convido o sempre tão confessamente humilde Tolan a fazer eco de um indivíduo tão problemático como Heidegger que dizia ser muito arrogante querer fingir claridade onde há escuridão como julgo que é manifestamente o caso da representação do tempo. Ficamos no entanto a saber que o Tolan  tem um problema com os parêntesis e os travessões porque se enerva perante recursões e excursos, esquecendo que a literatura só existe enquanto o leitor se mantém em suspenso, ouvindo a belíssima e sensual princesa das Mil e Uma Noites que esperava adiar a sua execução desfiando histórias a partir de histórias a partir de histórias, adiando a chegada da sua morte, e prolongando a madrugada, e não necessariamente em torno dos mesmos assuntos, ou com o mesmo ritmo narrativo.


O problema é a escrita do Italo Calvino, uma escrita demasiado fria, intelectual, madura e distanciada. É de tal forma adulta, dissecadora, escalpelizadora e auto-analítica, digamos assim, que não me suscitou qualquer recordação emotiva ou sentimento capaz de me arrancar a tal reflexão suprema sobre a morte de um dos meus progenitores, nem mesmo quando do ponto de vista descritivo e circunstancial, parece haver uma sobreposição entre o que era o pai do Italo Calvino e o que o meu era, respectivamente, para cada um de nós.
 

Meu deus, por onde começar? Aquilo que as pessoas julgam como frio, intelectual - como se existisse na nossa cabeça alguma coisa que não fosse intelectual - maduro, distanciado, dissecador, escalpelizador, auto-analítico (então não era isto que era um artista?) parece não suscitar qualquer recordação emotiva ou sentimento, capaz de arrancar a reflexão suprema sobre a morte dos progenitores. Eu diria ainda bem, o senhor seja louvado, ou então a literatura seria uma mera projecção daquilo que juglamos ser os nossos sentimentos individuais, santa pobreza, ou qualquer coisa como um Gabinete de Ajuda Metafísica às Pessoas Sensíveis, o que graças a deus, não é. É apenas uma conversa entre espíritos especialmente prodigiosos, potentes, irrepetíveis e invulgares, et in secula seculorum. O sempre generoso Nabokov explica que identificação sentimental é, com todo o respeito, o que os tolos procuram na literatura porque já não acreditam no Espírito Santo. Aliás, é essa uma das razões mais poderosas que explicam o facto de uns terem mais sucesso do que outros: há escritores que fazem livros para a celebração do santo sacríficio das multidões, enquanto outros lutam consigo próprios e com as suas memórias (razão porque o caminho de San Giovanni é sobre Calvino, então havia de ser sobre quem se foi ele que o escreveu?). Procurar o sucesso é perfeitamente legítimo. O que me parece arrogante e uma sincera falta de humildade e da devida prática da dúvida metódica como uma escassez de auto-crítica sobre as nossas capacidades, é querer justificar o sucesso com base quantitativa (parece que a Joana Vasconcelos pesa para aí um quinhentos quilos, logo é boa como o milho) e ao mesmo tempo erigir a quantidade como critério de verdade. Eu recomendaria cuidado com a utilização das palavras sucesso e verdade: queimam a língua.

Claro que estamos aqui a falar de densidade, profundidade, compreensão da complexidade do mundo, expressão do absurdo da vida, elegância, beleza, proporção, variáveis tão escorregadias e cortantes que apenas podem ser manejadas em simultâneo por malabaristas ciganos como é o meu caso. Não é preciso explicar que até uma criança de 3 anos compreende a dor de se perder uma cadela a quem nos afeiçoamos ao longo da vida, mas dificilmente compreende uma página de Calvino. Significa que as crianças não têm lugar no mundo? Não, significa que nos deviamos preocupar com a infantilização dos nossos comportamentos e que a catequese pseudo-liberal aprendida em duas linhas de maus livros de economia, onde se defende que o que acontece é sempre o resultado eficiente da realidade, pode levar à extinção, porque a natureza não tem critério moral e nós, que o vamos tendo e alterando para nossa utilidade, deviamos ser mais activos na consideração do que é bom e do que é mau, o que não significa que isso é uma tarefa fácil, se fosse não existiriam tempo ou morte. Significa a crítica do sentimentalismo (e da apologia do mercado como critério de verdade absoluta em todos os domínios da vida) que não devemos escrever livros sobre o que sentimos quando nos morrem animais queridos? Não, significa que é muito arrogante e pouco avisado, diria eu, se quiserem aceitar o meu conselho, achar que as pessoas estão todas interessadas (nem sei mesmo se a maioria está, mas a comunicação de massa fica para outro post) nos nossos animais queridos e nos sentimentos do conjunto de pessoas que possam eventualmente ter passado pelo mesmo. Na verdade, são muitos e ínvios os caminhos da vida.

A mais inaceitável conclusão, isto na minha opinião, como diria Jorge Jesus, é espetar com a etiqueta do aborrecimento num autor por falta de ouvido, esquecendo Tolan o seu belo mandamento número 7, a saber, Tenta sempre ter em perspectiva que podes ser pior, mais preguiçoso e mais estúpido do que pensas que és, ou seja, cuidado, olha que o Calvino pode mesmo ser um autor extraordinariamente quente, emocional, imaturo, e tu é que não estás a ver a coisa como deve ser. 

Parece que se a malta vai escrever sobre os pais, então por favor, é obrigátório incluir aquele episódio em que o pai lhes pregou um estalo ou lhe disse que não valiam nada ou o outro dia em que, do nada, o pai lhes disse que tinha muito orgulho no filho e o filho ficou com um nó na garganta. Isto está muito bem, e curiosamente, apareceu ontem, ao jantar, numa novela da TVI, havias pessoas aos gritos, copos partidos,  beijos, muitos palavrões, lágrimas, emoções, abraços, um cão aos saltos e muitos sapatos de salto alto, gajas boas, pernas longas, mas entretanto adormeci. É aliás revelador a utilização da expressão aquele episódio. A parte mais lamentável da péssima escola democrática que temos em Portugal, que espero consigamos corrigir em breve, prende-se com esta mania de confundir o nosso quintal com as dimensões do mundo, precisamente por falta de combate e guerra argumentativa com os outros. Aquilo que o Tolan julga interessante, ou aquilo que eu julgo interessante, vale o que vale. O que não podemos aceitar é que se faça uma apologia sentimental da literatura interessante, de um ponto de vista meramente subjetivo, e ao mesmo tempo se queira moralizar e limitar o que artista deve ou não criticar noutros artistas. Conheço suficientemente a história da teoria económica para saber que o mercado é um mecanismo que não deve ser aviltado submetendo todos os fenómenos humanos ao seu funcionamento, e depois caindo no relativismo militante quando o caos nos vem sufocar porque entretanto descobrimos que as condições desse mercado (externalidade, falhas de informação, descontrolo ou efeitos de escala das diversas fases da produção e do consumo) geram mais problemas do que benefícios.

O Tolan enquanto crítico do crítico:

O Tolan enquanto crítico do crítico revela uma confiança excessiva nas suas qualidades, justamente o que também critica nos seus mandamentos para a salvação do crítico como artista. Não me lembro de ter escrito em lugar algum que atribuia compensações acrescidas a textos longos mas quero dizer ao sacerdote Tolan, tão preocupado com a salvação moral do artista, que gosto de muito de introduzir assuntos que nada têm a ver com os textos ou com os critéros de avaliação dos textos sobre os quais estou a pensar, sobretudo porque esse tipo de princípios metodológicos são muito característicos do genuíno fedor da escolástica, como diria o meu amigo obscuro, indisciplinado, e pouco lido em Portugal, James Joyce, e por isso, recomendações disciplinares sobre os limites temáticos parecem-me bastante mais policiais do que simplesmente ir expressando o raciocínio tal como me apetece que seja expressado, isto se me for permitido pelo sacerdote Tolan da Santa e Imortal Igreja dos Últimos Dias do Mercado.

Confesso que me senti particularmente atingido pela inconsistência entre o mandamento 5 e 6. A rejeição que um artista faz do mundo pode ser, em muitos casos, a última réstea de esperança para a salvação do mundo, não o sabemos, e convém não menorizar os artistas em demasia. O facto de um artista ser bilioso pode não estar relacionado com o sucesso de um outro artista inimigo (pode ser o caso de o artista bilioso estar mesmo a educar generosamente os outros e, lá está, os outros é que não estão a ver) e mesmo quando um artista é bilioso devido ao sucesso de um outro artista, isso não significa sempre vulnerabilidade. Também pode significar que o artista de sucesso é um esbirro, um pífio, um desconte escondido, um hipócrita ressentido, que vendeu a sua arte aos meios de comunicação de massas e ao agenciamento das editoras por não acreditar que sozinho conseguiria ser ouvido e produzir a sua arte, e portanto, o artista bilioso, corajoso e confiante na sua arte, longe de ser vulnerável, pode estar a combater pela sua independência e modo de vida, em face dos poderosos que esmagam a sua sensibilidade em toneladas de lixo, por associaram o que as pessoas querem à arte geral, e unicamente aceite, impedindo o artista bilioso de expressar a sua diferença e independência, relativamente aos interesses das editoras e do que as editoras definem que as pessoas devem querer. Desde que se cumpra o código penal e civil, não vejo onde está o problema da batalha.

Concedo que a preguiça de tentar pode ser a besta negra de um grande artista, até por estar careca de saber que o grande artista é aquele que se esforça por se manter nas alturas, sobrevoando a generaliade dos restantes artistas e seu públicos ovinos, revelando precisamente a sua arte como a única arte, por técnica, individual e irrepetível e até, em algum momento, incompreensível, razão porque lhe chamam artista e não vendedor de automóveis ou funcionário das finanças, embora este possa por vezes revelar maior dificuldade com os públicos.

Para terminar o meu longo texto, quero deixar cumprimentos ao Tolan, e a todos os comentadores biliosos que me incitam a raciocínar, neste combate pela clarificação, com virilidade, do que pensamos e de como pensamos sobre o que fazemos. Mas antes que caiamos de lágrimas nos olhos nos braços uns dos outros, não posso deixar de expressar a minha fúria contra aquilo que julgo ser uma das maiores hipocrisias da mentalidade do homem democrático. Sabendo que os meios de comunicação de massas, televisões, rádio e jornais, geram automaticamente, e pela sua própria natureza tecnológica, uma só saída, a partir de autorias reduzidas, que chegam a milhões de consumidores passivos, gerando diferenças de consumo brutais, razão pela qual os próprios meios de comunicação de massas prosperam a par dos grandes monopólios económicos ao longo do século XX, é da mais vil hipocrisia, indigência mental e cobardia artística, confundir o número com a qualidade. Não quero dizer que nunca se dá a feliz coincidência do sucesso recair sobre um artista de mérito razoável (Saramago ou Lobo Antunes) mas negar que o sistema editorial do momento é profundamente fascista, totalitário, ineficiente e medíocre, só porque se espera beneficiar da mesma máquina que perpetua este estado de coisas, e possuindo nós as ferramentas que nos permitiriam criar economias de menor escala, mas mais competitivas e democráticas, é colocar-se ao lado daqueles que enquanto eu for vivo, não terão descanso, nem paz.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Peço desculpa a todos os comentadores, às suas famílias, bem como a todas as instituições de caridade mas sou forçado a fazer aqui uma incursão em terrenos chatos e perigosos.

Implícita a todos os problemas possíveis e imaginários está a pergunta pelo lugar da violência nas nossas sociedades domesticadas. Parece que eliminámos a agressão generalizada, encarcerámos os dissidentes, os psicopatas, os desviados e os desviantes, isto tanto pela monopolização das armas, que entregámos, e bem, à polícia e ao exército (continência) como pela mecanização do processo jurídico. Porém, esta pastoral de rebanho que corre como um programa ultapassado nos circuitos do nosso imaginário, quase com a mesma naturalidade com que piscamos os olhos diante de um perigo, tem uma correlação positiva, no caso dos países meridionais, bastante acentuada, com a domesticação do debate, com o enfraquecimento na utilização da língua, com o adormecimento das nossas opiniões. Chama-se comunicação de massas, jornalismo, impérios da informação, e como sabem, constituem o nosso inimigo predilecto.
 
 
Porque razão seremos nós portugueses tão avessos ao confronto? Porque no geral, e por motivos sociológicos, e não por razões fisiológicas, bem entendido, os portugueses são tão fraquinhos no capítulo da ginástica argumentativa e tão desprovidos de vontade de pensar que apenas os malucos mantêm o hábito de exercitar o confronto verbal e mental com outros malucos da mesma estirpe. Há nesta domesticação do debate, potenciada no caso português pela ausência de alfabetização da generalidade dos nosso avós, e nesta quase total neutralização da sátira (só os políticos continuam a deter o monopólio da agonia por linchamento público) potenciada pela ausência de Parlamento e a insistência no segredo do processo político, uma consequência terrível: a tão famigerada meritocracia não ultrapassa a fase pré-natal o que resulta num conservadorismo social tenebroso, ficando as pessoas «estúpidas» condenadas à sua «estupidez» por ausência de educação ou devido aos custos elevados da educação. Não quero dizer, tenham paciência, que somos todos Homeros e Newtons em potência. Quero dizer que vender gato por lebre (ou cavalo por vaca) é um problema típico das nossas sociedades e deve ser combatido com vigilância e discussão aberta, franca, corajosa. A distância que vai da educação à simplificação cultural é a mesma que vai da democracia ao fascismo comercial, um regime que temos vindo a desenvolver com afinco no Portugal do século XX.


A literatura é um caso evidente, por ser dos sectores onde o confronto aberto e a discussão crítica é apenas uma miragem longínqua, sobretudo porque os gajos dos livros, e posso comprovar, conhecem-se todos. Gosto particularmente de todas as pessoas que insistem em achar normal e até adequado que o nivelamento do consumo cultural das massas seja feito por baixo mas que consomem alegremente produtos de elite. Quanto ao povo, não se deve educar, porque o povo só gosta de porcaria. Deve ser por isso que existe a publicidade agressiva, precisamente pelo facto de as pessoas já saberem o que querem e ser benéfico à saúde financeira das empresas torrar milhões e milhões a convencer as pessoas de um facto incontestável e plenamente assimilado desde os séculos dos séculos.
 
 
Os meus queridos leitores, por exemplo, parece que não gostam da violência verbal, do combate de ideias, da sátira impiedosa, da gargalhada felina, da chacota dos homens públicos literários por vezes levada a cabo neste blog. A menos que um qualquer pobre político tolinho ou uma tonta beta e beata especializada em caridade amadora se prestem a servir de bode expiatório (que como sabem era um bode que os judeus sacrificavam ao pontapé e à pedrada pelas ruas da cidade, marcando com o seu sangue expiado as portas das famílias por motivos de segurança metafísica) a verdade é que nos é pouco simpática a agressividade argumentativa. Contudo, deve ser evidente para todos os habitantes do universo que no meu caso, discordo com todas as moléculas do meu organismo desta vegetativa catequese servida em bandeja oriental.


Se as figuras públicas, de onde não podemos isentar as figuras públicas literárias, acham por bem circular em cartazes nas traseiras de auto-carros suburbanos ou em fotografias de tamanho real em postos de abastecimento de compustível, dois casos reais com os quais fui, sou, confrontado, porque razão me é vedado fazer o meu comentário à ostentação da sua presença metafísica no meu espaço visual? Se os mesmos postam em blogues os seus raciocínios pedantes e vaidosos, e beneficiam, legitimamente, da exposição pública, espetando-nos sem aviso a sua cara na nossa, porque razão não podemos nós fazer o nosso juízo no mesmo espaço público e contra-atacar esta tentativa de coroamento simbólico na era da democracia com um belo tomate podre metafórico, lançado pela multidão anónima e esfomeada do mesmo protagonismo metafísico? Queremos combate, barulho, tareia, ou a liberdade de expressão serve apenas para ostentar na lapela de jornalistas gordos e ociosos cuja vida é dedicada a reproduzir as opiniões geradas automaticamente pelo sistema? Os meus comentadores não vêm aqui livremente largar as suas recomendações e gracejos, correções e críticas? E não continuamos todos de boa saúde, retirando bastante proveito da cabeçada verbal? Não podemos nós exercitar esta fértil produção de opiniões críticas de modo a tornar plural o sistema em que vivemos? Não era suposto isto ser uma coisa dinâmica?
 
 
Ora, eu gosto particularmente de policiar coroamentos indevidos, estragando (ou tentando estragar, isso depende do caro leitor)  os planos de negócio a editoras que não preservam critérios de controlo de qualidade, arrastando a literatura pela lama, desperdiçando recursos, e potenciando eventuais despedimentos e confundindo democratização, uma coisa nobre e digna, com aviltamento de um instrumentos divino como é o livro. Veja-se a constante elegia dos editores em torno do mercado do livro: que não se vende, que é difícil, que está mau para todos, que a crise obriga a cortes, etc. Então mas não são eles que sabem o que as pessoas querem? Como pode então o mercado do livro ser mau e limitado? Veja-se o seguinte exemplo que pessoas maldosas me fizeram chegar às mãos:

 
Actualmente, o meu clitóris não é mais sensível do que qualquer outra parte do meu corpo. É feito de pele, como os meus ombros, cotovelos, joelhos. Creio que endureceu. Ainda é de tarde, são quase cinco horas, mas já se sente o início da noite. Aqui, nos arredores de Reggensburg, há pássaros que só aparecem a esta hora. Não sei porquê, alguém deve saber. São pássaros pequenos que fazem barulho.

 
Nem mais, o leitor está a ler um excerto de José Luís Peixoto, publicado na revista Bravo! (2009, São Paulo) o que comporta desde logo uma vergonha nacional sem precedentes e que é necessário reparar sem mais demora. Estimados cidadãos do Brasil, nós não escrevemos assim, isto é só uma bricandeira, um equívoco, para ver se estavam atentos, ainda podemos fazer negócios proveitosos para ambas as partes, ok? Tentemos analisar o fenómeno, quanto mais não seja para travar a dor trágica da humanidade que permite tão alegremente que o absurdo nos visite de quando em vez. Dando de barato que as mulheres ensaiam correntes de consciência em torno do clitóris, não nego, não nego, e que o clitóris  pode deixar de reagir com sensibilidade, espero que por uso adequado, é-me muito difícil aceitar que existam na Áutria ou na Alemanha, onde a acção decorre, pássaros pequenos que façam barulho. Se assim fosse, seriam fuzilados sem piedade. Aliás, a continuação do pequeno conto, fornece um padrão comportamental que não se ajusta à existência de pássaros pequenos que venham  fazer barulho, ainda por cima à mesma hora, junto das janelas austríacas.
 
 
No passado, o meu clitóris deu-me grandes alegrias. Marcou o meu epicentro. Sou uma mulher, não deixei de ser uma mulher, mas agora tenho outros interesses.
 
 
Isto é legítimo. A mulher sofreu um degosto e quer esquecer a relação com o seu clitóris, apesar das alegrias providenciadas por esse organismo feito de pele, isto segundo o narrador. Bem, isto é uma mulher visivelmente magoada pela vida, atropelada por sensações bizarras que muito justamente se intrometeram entre ela, o seu marido, o clitóris dela, e o amante. Este amante devolveu uma certa alegria de viver à mulher burguesa, que recuperou a chispa de paixão da juventude, mas o marido, frio e sexualmente ausente durante dezasseis anos, segundo o pungente retrato, permanece como uma memória perturbante, apesar dos esforços da mulher para afastar essas recordações cinzeladas pela dor, guardadas entre veludo envelhecido, uma imagem enfraquecida mas doce, como o som de uma caixinha de música pontapeada para longe, de onde vai brotando ainda uma melodia cada vez mais roufenha mas agradável. Vejamos o que pensava disto tudo o marido.
 
 
Não sei o que ele pensava de mim. Até podemos ficar no teu hotel, dizia o meu marido, sem saber o que dizia. Literatura. Adorava que o meu marido gostasse de ler. Tenho a certeza de que adoraria os russos: Tolstoi, Dostoievski, Gogol. Ah, Gogol. Quando quis trabalhar, o meu marido conseguiu-me uma posição a gerir uma pousada quase no centro de Amstetten. Após uma semana de serviço, meados de setembro, o Josef possuiu-me na cama dupla do quarto 28.

 
Ah, Gogol, Gogol, grande maluco, Ah Gogol, Gogol, como a vida é, vê lá tu, Gogol, Gogol, ainda ontem escrevias fabulosos contos e agora andas aqui a ser arrastado numa revista brasileira no meio de uma narração insólita. Portanto, recapitulemos: o marido recolheu a lenha para se queimar - deixar a mulher ir para uma pousada -, e o Josef, o amante, acendeu o fósforo. Mas atenção, tanto o marido como Josef acentam perfeitamente na ideia que guardamos dos germânicos, pelo menos tal como Holywood os perpetuou, vestidos de napa preta, com óculos redondos e aos gritos, soltando érrrrres pela atmosfera densa e pesada.
 
O meu marido é obediente. O Josef tinha verdadeiro sotaque austríaco, claro. Os seus érres davam-me tesão. Durante anos, eu corava só de lembrar-me dos seus érres.
 
Os érres dão tesão? Só se for ao Jose Luís Peixoto porque uma germânica, penso eu, não notará os érres, ou estaremos a falar de uma portuguesa? Brasileira?
 
 
Desde esse dia, até à partida, eu e o Josef comemo-nos como animais, como lobos, em todas as camas da pousada. Engolimo-nos. Em Dortmund, eu sonhava com ele. No duche. Em Weimar, comecei a conformar-me. Em Weimar, tivemos uma cadela, Lassie. O meu marido apareceu com ela pequenina, quando chegámos. Morreu uma semana antes de partirmos para Reggensburg, bem-educada. Conformei-me que não voltaria a ver o Josef. Por isso, nunca quis voltar a Amstetten. O Josef era um segredo para sempre. Havia momentos em que me parecia que só tinha existido na minha imaginação, mas isso é algo que me acontece com todo o passado. Há momentos em que me parece claramente que algum detalhe do passado, a minha mãe, sexo oral quando namorava com o meu marido, sopa de abóbora, só existiu na minha imaginação.
 
 
Maternidade, sexo oral e sopa de abóbora. É fascinante que não seja necessário tecer mais comentários porque isto já é tão engraçado assim que tenho medo de estragar o conjunto. Mas agora vem o pior. O Josef desapareceu, os pássaros passaram a fazer mais barulho, o marido provocou um adormecimento do clitóris na sua pobre mulher, o que levou o pobre Clitóris a abandonar o epicentro da senhora e como se isto não bastasse, zás, o Josef é um psicopata asqueroso.
 
 
Abril, abril, quando desliguei a televisão, cambaleei pela sala. Agarrei-me a móveis para não cair. E pensei: não. Pensei: não. Até cheguei a sorrir. Não pode ser. O Josef tinha mantido a filha presa na cave durante vinte e quatro anos. Tinha-a violado repetidamente e tinha tido sete filhos com ela, um dos quais morreu. Na televisão e no rádio, chamavam-lhes filhos-netos. A filha do Josef e alguns dos seus filhos-netos viviam na cave. Um deles, uma rapariga com dezanove anos, nunca tinha visto o sol.
 
Isto parece-me vagamente real, sinistramente semelhante a qualquer coisa, uma exploração vergonhosa e inaceitável do drama alheio, o que justifica em pleno o enxovalhamento público a que aqui se presta o muito mal educado José Luís Peixoto e me retira qualquer peso da consciência por aqui o dissecar impiedosamente. Devo dizer como nota de encerramento que num blogue de um escritor tão famoso como Peixoto, que vende milhares de livros, este texto tinha apenas 5 comentários, todos deprimentemente laudatórios, enquanto neste nosso obscuro blog, as pessoas dizem coisas interessantes quando têm que dizer e atiram tomates podres quando entendem. O que quererá isto dizer? Que já todos sabemos que a estupidez é uma realidade colectiva? Que gostos não se discutem? Que os leitores do José Luís Peixoto são burros? Que os bons escritores apenas serão coroados quando vier o reino de Deus? Não entres tão depressa nessa noite escura, se faz favor. Esbracejemos com fúria contra a morte da luz. Anunciemos outros mundos mais luminosos, honestos e talentosos. Embora consciente da tragédia, gostaria de viver num país mais exigente, e por isso menos complacente consigo próprio e com as suas limitações, se me é permitido o desabafo e parco contributo para a reflexão nacional. Pronto, assunto encerrado. Prometo que não voltarei a falar no José Luís Peixoto.


A todos os leitores descontentes com este post, e desiludidos com a minha insistência no tema, só posso lamentar as nossas diferenças em matéria de economia moral, e prometer que em breve continuaremos com a nossa série de ensaios, a saber:
 
1. Terá o neo-realismo sido uma forma política artísticamente pobre ou o mais elevado ideial estético do século XX?
 
2. Billy-Bud de Herman Melville à luz das revoluções burguesas do século XVIII.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Deixemos por um momento a minha disciplina olímpica preferida: o tiro aos escritores injustamente aclamados.

“Non temo l’ingegneria genetica ma la manipolazione culturale”
Rita Levi Montalcini



RITA LEVI MONTALCINI - ABBI IL CORAGGIO DI CONOSCERE

Numa extraordinária entrevista, a não menos extraordinária Rita Levi-Montalcini, fala do seu «primo imaginário» e amigo de sempre, Primo Levi.

(...)Um químico da qualidade de Primo Levi não poderia ter encontrado um modo menos dramático e teatral para pôr fim à sua vida? Uma pílula é muito mais discreta. Nem suicídio nem assassinato: um espasmo súbito, uma perda momentânea da consciência, certamente ditada pelo estado depressivo. Também o escritor americano William Styron, que sofreu de uma depressão aguda, suporta a minha tese: Primo foi vítima de um colapso bioquímico, um colapso que desafia qualquer possibilidade de controle. Quem experimentou a depressão, sabe do que falo.

Sofreu de depressão?

 "Ah, sim, após o Nobel. Eu não podia suportar mais toda aquela popularidade excessiva, os rituais repetitivos de homenagem, o ambiente de celebração permanente. Eu tinha que falar com uma..."

...Psicanalista?

"Não, não. Fui a um psiquiatra, o mesmo que o do Primo".
 
A dado momento, a Professora e neurologista, galardoada com o Prémio nóbel da Medicina em 1986, interrompe o seu discurso e começa a recitar alguns versos de Yeats: O "homem velho é apenas um naufrágio humano, um vestido em farrapos pendurado num cabide".


E' morta Rita Levi Montalcini

Morreu em Dezembro do ano passado, na sua casa em Roma, com 103 anos.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A prática é o critério da verdade, afirmou Jorge Jesus citando Lenine, mas a estupidez tática é o critério dos treinadores que não são capazes de manipular a concordância de géneros enquanto respondem às estúpidas perguntas dos jornalistas como provou manifestamente o sempre elegante e eficaz Pedro Emanuel.


"To my knowledge," says Philip Roth in conversation with Primo Levi, "only two writers of importance have been managers of paint factories," and for some reason I find this an almost beatifically pleasing assertion. The two he can think of are Levi himself and Sherwood Anderson - but in the interview reprinted in this wonderful book, Levi is able to come back with a third name: Italo Svevo, who was the commercial manager of a company which "supplied the Austrian navy with an excellent anti-fouling paint, preventing shellfish encrustation, for the keels of warships". 



Fazes-me lembrar um gajo que ao mostrar-me uma casa que queria vender me disse a propósito de um quadro giro que tinha na parede: "Como você sabe a evangelização da Rússia começou pela Crimeia...". 
Zé, comentador do Elogio da Derrota, numa das melhores introduções conhecidas à minha obra blogosférica



 











quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Um muro contra o desespero: Primo Levi.


'If chemists can write like that, God help the writers'
 
Siddhartha Mukherjee
 
 
Carole Angier, The Guardian,

 
 
The Double Bond: Primo Levi: A Biography
 




1.
Se há problema que ainda é capaz de assustar esta barata curiosa, a humanidade, é precisamente a capacidade de colocar a pergunta sobre a legitimidade de quem fala. Estimulado sobretudo pelos meus inimigos e amigos ocasionais (os generosos e essenciais anónimos bem como os comentadores fiéis) forjo nesta gloriosa bigorna da blogosfera a minha personalidade incandescente, mais próximo de Heitor do que do Ulisses, mas devo lembrar que a diferença entre mim e Philip Roth ou Gonçalo M. Tavares se constitui desde logo a partir da qualidade e quantidade do arsenal de guerra que tanto mais me assiste quanto maior é a violência e o inesperado do combate - e por isso não preciso de recorrer tão assiduamente às charadas e aos esconderijos linguísticos - para não falar da nada comparável genealogia da minha mente, o que explica tanto a irrelevância filosófica de autores especializados em filosofia de bolso (P. Roth ou M. Tavares) como a pertinência dos meus textos, que mesmo publicados neste lugar obscuro e produzidos por um ainda mais obscuro autor, alf, vão mobilizando as críticas dos fiéis situacionistas que desempenham aqui o importante e sempre nobre papel assumido pela multidão esfomeada nas últimas tragédias de Shakespeare. O desespero cego é o motor relapso contra o qual o escritor exerce a sua perversa e eficiente desmontagem do maquinismo humano.

2.
Devo avisar que a tranquila paciência do mestre oriental é o único elemento animado após séculos de contacto com a Igreja, vivendo ainda nas cavidades da minha consciência como uma toupeira que, estranhamente fortalecida pela fome, fosse sobrevivendo a sucessivos desastres geológicos. Compreender a natureza da nossa espécie é compreender o equilíbrio instável, o fenómeno que faz da do contraste a âncora de aço que nos impede de sermos tomados pelas vagas de movimento incessante que parecem constituir, de forma paradoxal, a estrutura do mundo. Sem inimigos não somos ninguém, e por isso, é com a paciência do rabi judeu que acolho as pedras lançadas pelos anónimos que aqui vêm descarregar a sua fúria. Irmãos na incompreensão e na dor perante a fugitiva realidade das coisas que nos magoam, aprenderemos juntos a neutralizar este tirano insidioso, a mente, esse polvo conceptual, a consciência, esse computador cego, o corpo, que imparáveis na sua insuficiência individual, e desesperados na sua multiplicidade monstruosa perante as deslocações de força que respondem a uma economia cujos fundamentos se processa numa outra escala, parecem só saber produzir ordens violentas e contraditórias, proclamar declarações de guerra incompreensíveis, rasgar os precários acordos entre o nosso corpo cansado e a exausta realidade da nossa história.

 
 
3.
Primo Levi é um dos mais extraordinários escritores da história do mundo ocidental e não exagero ao proferir tal juízo, precisamente porque mais do que qualquer outro, compreendeu e combateu a tragédia do mundo que estamos prestes a construir, e que viverá angustiado pela dificuldade em separar a realidade da ficção. Quanto à altitude a que se eleva a sua escrita, deve-se tanto a factores morais como estilísticos, o que só é acessível aos indivíduos que reuniram as condições favoráveis (e atrozes, para sermos mais precisos) que forjam as capacidades essenciais para descrever o ambiente interior e exterior do seu corpo, sempre com excruciante claridade. Já aqui repeti várias vezes, mas repito-o com generosa paciência, que os meios de comunicação, forma e conteúdo, dependem de uma relação entre os limites materiais de cada meio de expressão, e dos códigos utilizados para significar os padrões mentais. Claro que é sempre possível viver em realidades paralelas (veja-se o caso da literatura bíblica) mas é também claro que o romance está morto e enterrado desde Cervantes, o que significa que o problema mais perturbador do século XX não foi a caracterização poética da maldade, que M. Tavares incansavelmente pretende destruir com instrumentos teoricamente deduzidos da razão filosófica (há quem chame erradamente ao seu exercício um ramo da Lógica, o que só demonstra a indigência dos portugueses como cultura filosófica)  mas sim a incapacidade de continuar a mover a descrição do mundo através da fição, diante da capacidade horrorosa do produzir o mal. Todos sabemos que foi Walter Benjamim quem primeiro decretou a morte do narrador exatamente no termos da exterminação da cultura oral, da sociedade rural e da família cristã (diria eu) mas é curioso assistir à inconsistência manifesta do escritor contemporâneo, tão lesto no processo contra a ciência, mas tão benévolo com os prémios, os agentes e a cultura literária que o reproduz monstruosamente em cada igreja cultural (para não me referir à escola) com um rigor maquinal e uma indestrutível força nazi.


 
4.
Parte da angústia do magnífico livro de Primo Levi, O Sistema Periódico, advém deste singelo facto. Levi esteve na face da morte, roubou para sobreviver, viu as monstruosas entranhas da máquina, assistiu à destruição da sua identidade como se observasse num espelho a sua própria decapitação, e entendeu que perante isto, ou fazia silêncio ou perpetuava a farsa  ridícula da ficção moderna (o homem x, com o perfil y, prosseguia na acção z) ou caía para dentro do abismo Joyceano da linguagem, ou recontava burguesmente a proustiana paixão da sua consciência, tudo formas esgotadas de fingir que a publicação de livros pode ter ainda um sentido moral ou muito pior, útil. Pouco depois do seu regresso, ainda enlouquecido, publicou em 1947 Se Questo È un Uomo mas basta considerar o ridículo caso da tradução americana do título Survival in Auschwitz, para entender os equívocos porque passamos ao passar da tragédia individual para o mercado do livro. É tão trágica a superioridade da cultura literária inglesa, que traduziu a difícil expressão italiana por If This is a Man como é cómica a esterilidade literária americana, um país que, repito, depois de Melville, a única maravilha que produziu foi o computador pessoal (o que não é pouco, note-se, e é bem capaz de ser a razão pela qual o primeiro grande escritor digital poderá vir a ser americano).

 
 
5.
O dilema de Levi como o próprio confessou por diversas vezes em entrevistas, e nem seria necessário, dada a clareza com que escreveu os seus livros, decorria do peso da sua memória, comparando-se com ironia ao sinistro personagem de Jorge Luís Borges, Ireneo Funes «el memorioso», um indivíduo incapaz de esquecer, e cuja massa cinzenta computava em segundos as infinitas imagens de tudo aquilo que os olhos captavam na sua rotação precipitada e incessante. Primo Levi viveu a experiência do assassinato meticuloso e da degradação moral num ambiente controlado por uma planificação de interesses totalmente desligada dos instintos tradicionais, onde se misturavam elementos irracionais e instintos biológicos, e viveu com especial capacidade de recordar, o que constitui a tragédia da seu sofrimento e o fundamento da sua infinita capacidade como escritor. O nazismo foi a primeira experiência absoluta de robotização humana, um aspeto tão assustador que poucos para além do quase maluco Jorge Luís Borges, e do seu mais fiel leitor e igualmente maluco, Roberto Bolaño, compreenderam a importância e empreenderam a tarefa de procurar qual o detonador da loucura alemã em 1939. Borges explica no seu epílogo ao fascinante conto «Requiem Alemão», como até os germanistas se revelaram incapazes de compreender a tragédia do nazismo: nem mais, nem menos do que a invenção de um mundo totalmente humano. Como o humano não tem limites definidos, os campos de concentração, logicamente, também os não tinham, o que levou o Terceiro Reich a empreender uma fuga desesperada para não se confrontar com a própria incapacidade de fundamentar logicamente um plano que não tinha pontos de apoio se não o desejo. A história da segunda guerra mundial está por escrever e enquanto não a escrevermos não estaremos em paz.
 


6.
Levi foi o primeiro a iniciar esse difícil trabalho. Preso em Auschwitz e forçado depois a trabalhar como químico no Laboratório de Monowitz, o que lhe terá ironicamente salvo a vida, Levi foi um dos escravos utilizados pela poderosa I. G. Farben que sustentou não só o fornecimento de gás aos campos de concentração como uma percentagem significativa dos materiais utilizados pelo exército alemão: borracha sintética (100%), metanol (100%), óleo lubrificante (100%), plástico (90%), magnésio (88%), explosivos (84%), ácido sulfúrico (35%) segundo o extraordinário Wall Street and the Rise of Hitler, Capítulo II. Com o rigor geométrico de Jonatahm Swift percebeu que o dilema da caracterização poética do terror nazi, podia ser enfrentado com a competência do químico industrial, a sua profissão, desde que munido com uma tremenda desconfiança perante as recusas semânticas do experimentalismo pós-moderno, fruto de um tremendo cansaço perante as densidades magmáticas da língua - categorização exemplar da pedantice literária que teve em Portugal o seu expoente máximo em Eduardo Prado Ceolho. Assim, utilizaria o próprio veneno da maldade para envenenar o maldoso. Levi começou por recusar a natureza insuportável da ficção (aquilo que julgo ser o pior pecado de M. Tavares, que explorando sem vergonha o sub-texto do nazismo, do mal mecanizado, e referindo-se várias vezes à impossibilidade da poesia depois de Auschwitz, e outras banalidades desarmantes, cai impiedosamente no ridículo do Era uma vez, desdobrando-se em prémios atribuídos a livros sobre o mal; mas alguém acredita que um livro sobre o mal seria realmente premiado?). A literatura só podia ser resgatada com a colocação da experiência individual no campo de visão do livro. Primo Levi disse-o de forma clara: «o inarticulado não é o articulado, o ruído não é o som. As Páginas brancas são páginas brancas e o melhor é chamar páginas brancas às página brancas. E se o rei vai nu é honesto dizer que o rei vai nu». Cristalino. Só um autor muito corajoso assumiria em primeio lugar que o sistema literário, baseado na República das Letras, é em grande medida a assunção de um desejo de superioridade, sistema que está também, e de forma muito fundamental, na base do nazismo. Lamento informar-me a mim próprio desta triste realidade mas é a triste realidade, como os anónimos (e não só) deste blogue, almas revolvendo-se no fogo purgante do esquecimento, gritam aos meus ouvidos a toda a hora.
 
7.
A consistência deste princípio demonstra-se pela desarmante incapacidade que sinto neste momento para mergulhar nos méritos literários de O Sistema Periódico. O rigor e a sinceridade desarmam a astúcia. Mas basta reler algumas das suas páginas para logo sermos atingidos pela tranquilidade, e esse julgo que é talvez o dom mágico de Primo Levi: levar-nos pela mão a contemplar o Inferno. Não julgo especialmente pertinente elaborar sobre a estrutura organizativa do livro, uma associação entre a numeração atómica dos elementos, as suas características físico-químicas, e o tom geral de cada pequena narrativa. É importante reter que a página estava em branco e que uma mente especialmente poderosa, culta, elegante e corajosa, resolver partilhar com o leitor a sua impressão do mundo. Primo Levi começa a crónica da sua juventude, relatando os anos universitários, a sua paixão por uma leitora de Thomas Mann (é ainda Levi o ingénuo) tornando-se depois fiel discípulo de um Assistente da Faculdade, fascinado pela física teórica que contrariamente à sujidade culinária da química guiava os aprendizes pelos labirintos elegantes das formulações cósmicas, isto nos meses em «que os alemães destruíam Blegrado, despedaçavam a resistência grega, invadiam Creta por ar» (p. 78). É comum referir-se que a elegância do livro se baseia numa recusa da retórica, um juízo anglo-saxónico fruto de um desconhecimento prático da tradição litrária meridional, um desconhecimento que associa os latinos ao barroco, esquecendo que Platão, Cícero, Xenofonte e Séneca não nasceram nos lameiros do norte da Europa. A elegância do livro baseia-se antes numa economia de meios que é bem exemplificada pelo conjunto de «coisas essenciais» que Primo Levi leva para Milão em 1942: «a bicicleta, Rabelais, as Burlescas, Moby-Dick traduzido por Pavese, o picão, a corda de escalar, a régua logarítmica e uma doce flauta» (p. 139). Sempre me foi mais fácil encontrar na história da literatura pessoas com quem se pode conversar.
 
 
8.
Depois de ter estado do outro lado da vida, regressa a Turim, em 1946, e resume o seu programa. «As coisas vistas e sofridas, ainda mais me queimavam por dentro; sentia-me mais próximo dos mortos do que dos vivos, e culpado de ser homem, porque os homens tinham edificado Auschwitz, e Auschwitz engolira milhares de seres humanos, muitos meus amigos, e uma mulher que me estava no coração. Parecia-me que me purificaria contando, e sentia-me semlhante ao velho marinheiro de Coleridge que aborda na rua os convidados que vão à festa para lhes infligir a sua história de malefícios» (p. 190). É a paixão por uma mulher que o resgata, a vitalidade triunfa numa espécie de programa ilumista e contra-romântico, a escrita «torna-se uma obra de químico, que pesa e divide, mede e julga sobre povas certas e se dedica a responder aos porquês» (p. 193). Levi percebeu que nada há de mais fertil literariamente do que a realidade e quando descreve o pai do seu companheiro de transformações do estanho, surge um velho de bigodes, proprietário do monopólio do sangue dos bovinos abatidos no velho Matadouro Municipal. «Com o sangue fabricava botões, cola, frituras, chouriço de sangue, pinuras murais e massa de polir. Lia exclusivamente revistas e jornais árabes que vinham do Cairo onde vivera muitos anos, onde lhe nasceram os três filhos, onde defendera a tiros de espingarda o Consulado italiano contra um multidão enfurecida e onde deixara o coração (p. 233). O elogio dos que não têm medo de errar, a crítica do revivalismo das glórias passadas, dos memento mori, e uma sistemática desconfiança perante os homens temerários de outra casta, assediados mais pela ruína dos outros do que pelo próprio triunfo, que nos romances chegam dos confins da terra para estragar a aventura dos heróis positivos» (p. 265).


 
9.
O último conto é uma apoteose de erudição científica sobre a profundidade poética, um algoritmo para o que nos resta fazer diante das páginas em branco do século XXI. Conscientes da física nuclear, não podemos permanecer num paradigma pré-renascentista, quase proto-aristotélico, de consciência individual, fazendo de conta que a nossa unidade é a mais poderosa lei do universo: já nem os economistas neo-clássicos acreditam nisso. Primo Levi segue a história de um átomo de carbono, avisando desde logo que nesta unidade de medida é impossível falhar, dados milhões de hipóteses de verosimilhança expressos pelas movimentações das partículas, uma vez que mesmo escolhendo aleatoriamente o ano de 1840, a infinidade de trocas e fenómenos é de tal ordem que podemos seguir por onde quisermos, desde que nos mantenhamos fiéis a um percurso ditado pelas leis da ciência. A ironia alia-se à compreensão para vencer o medo e o desespero. Basta então escolher o átomo, neste caso, carbono. Pode ser na inspiração pulmonar do falcão, depois a penetração no seu sangue, depois a permanência no vento, durante oito anos, e a viagem sobre «o mar ou entre as nuvens, sobre florestas, desertos e incomensuráveis extensões de gelo» (p. 286) depois ultrapassando «os Apeninos e o Adriático, a Grécia, o Egeu e o Chipre», até chegar ao Líbano, onde o átomo se introduz no «tronco venerável de um cedro, passando para um caruncho, que vai cavando a sua galeria entre o tronco e a casca, até sair na Primavera sob a forma de um borboleta feia e cinzenta que está agora secar ao sol, transtornada e deslumbrada pelo esplendor do dia; é aí que ele está (novamente o átomo), num dos mil olhos do inseto, e contribui para a visão sumária e tosca com que ele se orienta no espaço. O insecto é fecundado, põe os ovos e morre; o pequeno cadáver jaz no bosque rasteiro, seca, mas a couraça de quitina resisite durante muito tempo, quase indestrutível. A neve e o sol abatem-se sobre ela sem a danificar; está sepultada sob folhas mortas e o terriço, tornou-se uma presa, uma «coisa», mas a morte do átomos não é irrevogável. Eis que se entregam ao trabalho os omnipresentes, os incansáveis e invisíveis bichos da manta mora, os microorganismos do húmus» (p. 291).»
  

 
10.
Qualquer livro de Primo Levi é um compromisso com a elegância e um desafio sobre os limites da beleza, onde um trapezista hábil segue por um tensa e consistente corda linguística olhando com tranquilidade o infinito abismo da razão. O precípicio que se abre diante do percurso não é uma metáfora. Se Isto é um Homem foi recusado em 1946 por todas as maiores editoras e apenas uma pequena casa vanguardista, De Silva, publicou 2500 exemplares. Vendeu cerca de 1000 cópias e talvez por coincidência, a editora fechou pouco depois. Dois anos depois de ter aparecido, o livro estava esquecido e apenas em 1958 foi reeditado. Se o leitor quiser experimentar a sensação perturbante do girar da roda da fortuna, identificada por esse cínico secretário florentino, Maquiavel, e sentir assim uma aproximação à vertigem,  basta passar em revista as críticas do New York Times sobre as traduções americanas da obra de Primo Levi. O tom hesita entre o paternalismo, a decepção e um entusiasmo moderado. Apenas depois de 1987 se notam as abundantes pinceladas de verniz reservadas para os cadáveres dos canonizáveis; 1989 é já um ano de enrugamento da testa (o muro não tardará a cair) e depois dos anos 90, as críticas evoluem para uma elegia revestida de tonalidades cada vez mais carregadas e exuberantes. Com efeito, Abril de 1987 foi o mês em que Primo Levi, em circunstâncias obscuras, se precipitou nas escadas do prédio onde nasceu, em Turim, para onde voltou depois da guerra, onde completou o seu último e profundo livro, nunca publicado, e onde vivia até morrer nesse enigmático momento.

Então o Steve Jobs namorou com a Joan Baez e só eu é que não sabia? Vou já ler as obras completas de Philip Roth, uma pessoa espectacular capaz de publicar dezenas e dezenas de páginas onde o leitor navega em vão para encontrar uma metáfora minimamente satisfatória, isto é, onde o leitor tem muito dificuldade em saber para que serve aquilo tudo.

 
Yet, he was hardly conventional. The sleeves of the understated gray cashmere sweater he wore that October morning in 1983, on top a simple white, v-neck t-shirt, were pushed up just enough to reveal the coolest watch I had ever seen, strapped high on his left forearm. I wanted very much to get a closer look at it, but I didn’t dare. 
  
 
  
When he came out into the lobby to meet with us, I was startled by his informality, his bouncy step, and friendly disposition because the receptionist earlier told us Steve was in an "extremely foul mood."
"His date with Joan Baez last night must not have gone so well," she said.  Aqui.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Agora que o Carnaval acabou e Bento XVI contagiado pela obra prima de Moretti resolveu ir esgalhar no pessegueiro em sossego, podemos finalmente continuar a nossa análise médico-cirúrgica das razões que explicam a relação entre a subida do número de visitas deste blogue e a redução do número de seguidores.

Para responder a uma pessoa particularmente irada com a introdução na minha horta vocabular dos elementos recolhidos no campo semântico das alfaias agrícolas teria que adiar a minha análise do magnífico O Sistema Periódico, de Primo Levi (com especial referência ao interessante caso de Gonçalo M. Tavares - uma pessoa de talento e trabalho, o que é altamente respeitável nos dias que correm, mas que falhou uma obra realmente incontornável por medo do insucesso, o que o levou a ligar-se demasiado cedo a Professoras Universitárias de Filosofia especialmente confusas, Filomena Molder, e escritoras especialmente brilhantes na terra das perturbações cognitivas, Gabriela Llansol, o que pode ser bem demonstrado pelo seu ridículo opúsculo, agora reeditado, Breves Notas Sobre as Ciências, que é, como em tempos lembrou o maradona, uma brilhante demonstração de ignorância militante, de má fé argumentativa para não falar de um inaceitável obscurantismo medieval fundado numa arrogância metodológica sem precedentes, tiques literários modernos - também comuns a P. Roth - muito justa e eficazmente torpedeados sem piedade por um escritor inqualificável de grandeza, conhecimento, precisão e génio como Primo Levi).
 
 
O caso da inanidade literária de Philip Roth julgo que é auto-comprovado pela sua vasta e descuidada obra (veja-se, a mero título de exemplo, o número de palavrões descontextualizados, factor que costuma ser um indicador fiel de impotência estilística, e contra mim falo, para não falar da infertilidade confrangedora dos temas: intelectual deprimido tem problemas com a pilinha; escritor confuso medita sobre o desejo; professor angustiado naufraga na sua própria incapacidade amorosa) mas um dia destes vou verificar novamente, uma vez que se há coisa que eu respeito são as opiniões dos meus leitores. Quanto ao inchaço antes do tempo, confesso que é uma coisa que me atinge particularmente porque a expressão «antes do tempo» isto é, antes da prova demonstrada e cabal da obra de génio, revela que o leitor ainda não logrou compreender que não só essa prova tem sido constantemente oferecida de forma gratuita, como existe uma confiança excessiva nas minhas capacidades futuras, no empreendimento consistente da minha carreira como escritor, na evolução linear do meu trabalho como autor de obras publicadas e inscritas no mercado do livro e outros tópicos estudados pelos economistas, quando essa planificação de uma sociologia da qualidade (que aqui tenho desenvolvido) e dos critérios que devem considerar-se a propósito dos méritos públicos de um autor são tarefas sempre em aberto e que acompanham a realização da obra, e qualquer antecipação externa ou prematura é justamente o que impede um escritor de ser um escritor. Mais uma vez confio nas opiniões dos meus leitores: a eles caberá efectuar o trabalho mais pesado e infértil, perpetuar a crónica viva das minhas capacidades e a denúncia clara e impiedosa das minhas limitações (eis o que o mercado do livro não tem sabido oferecer, por medo de esgotamento da mama, e que a blogosfera oferece de forma gloriosa, ainda que com os problemas de mediação e hierarquia que nos são conhecidos).
 
 
Espero ter oportunidade de proceder ainda no dia de hoje ao prometido ensaio sobre Primo Levi, isto se me for possível completar todas as tarefas agendadas antes do Manchester United-Real Madrid.