Por muito que as questões me suscitem indignação tenho aprendido com as lojas de chineses e o Nuno Rogeiro a estar aberto a todos os cenários possíveis mas confesso que não estava preparado para uma associação entre Paulo Coelho e James Joyce. As multidões que têm vindo a familiarizar-se com a minha obra sabem que tenho os economistas na pior conta possível, ao contrário da economia, ciência que muito prezo. Na verdade, e mais uma vez, os príncípios neo-clássicos têm uma explicação cristalina para o fenómeno do livro enquanto estilo: todos os choques entre a diferenciação do modelo de negócio e a massificação de produtos de sucesso resultam em coisas muito parecidas com o Ulysses. Que é o Ipad senão um Ulysses da informática? No momento em que os escritores começaram a profissionalizar-se e a generalização da alfabetização, bem como a descida do preço do livro, transformaram o romance num objecto tão distintivo como a escova de dentes, os escritores mais educados, exigentes e perturbados, foram obrigados a criar produtos de elite, acrescentando valor. Do ponto de vista da história da literatura, somar valor é somar bizantinices e relação com a tradição clássica, com mais ou menos elegância, e no caso de Joyce, sobra tanto elegância, como conhecimento do ofício. O domínio da retórica é gigantesco, o conhecimento da exegese shakespereana é medonho (o que apenas pode ser contemplado pelo universtário duplamente treinado na obra e crítica de Shakespeare) etc, etc, e estas coisas serviram, e têm servido, para despromover a uma distrital pejada de pelados e centrais caceteiros, qualquer leitor que, por força de suas próprias mãos e energia de seu puro espírito, ouse construir uma visão sólida, independente e abstracta sobre o que é a literatura.
Joyce era demasiado inseguro e egocêntrico para experimentar a novela de sucesso e por isso resolveu dedicar-se a uma obra que permitisse níveis de venda aceitáveis, mas que constituisse um enigma académico, capaz de lhe granjear um lugar entre os idiotas universitários que desempenham, por enquanto, um lugar importante na edificação das galerias dos autores consagrados. Ninguém mais do que aquele dublinense manhoso tinha pura consciência das malandrices carregadas nas páginas de Ulysses. Acontece que lhe apeteceu utilizar os vícios culturais, de uma civilização onde as Universidades se estavam a constituir como potências de cultura, para apanhar o barco do futuro, garantindum um mínio de respeitabilidade, um escândalo moderado, e algunas proventos financeiros. E não se enganou.
Quem quiser um exemplo actualizado, mas em postiço, considere toda a pirotecnia que envolveu, entre as hipnotizantes e fluorescentes lágrimas do escritor refletidas no áspero zinco da pobre critica, o lançamento de Uma Viagem à Índia, de Gonçalo M. Tavares, um livro medíocre onde apenas se salvam algumas metáforas bem desenhadas, mas que foi parido juntamente com um mapa dos cantos e significados, em aberto diálogo com o Ulisses, embora também abrindo as pernas à Epopeia Camoniana, numa orgia pornográfica onde não faltaram velhinhos desmemoriados como Eduardo Lourenço, totalmente enganado pelas manhas do artista, diga-se em passagem. Desde sempre, a distinção emerge como um altar onde se sacrificam as mais nobres virtudes da república e os escritores, embora muito esforçadamente o tentem, por vezes até à morte, é justo dizer, não se distinguem, ó impotência das impotências, de qualquer outro carpinteiro das misérias humanas. Do padre ao apresentador de televisão, todos temos os nossos truques. Tudo depende de quem queremos agradar. No fundo, somos todos umas putas relaxadas, e isto, até Jesus Cristo, um analfabeto sem biblioteca, o sabia, e por isso se enamorou por uma mulher com experiência do comércio amoroso. Tudo o resto, é apenas o perturbante barulho da eterna zaragata genética que nos precedeu e que nos há-de suceder.